Único ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) indicado até agora pelo presidente Jair Bolsonaro, Kassio Nunes Marques tem acumulado desgaste na Corte por causa de decisões consideradas tecnicamente frágeis e alinhadas aos interesses do Palácio do Planalto. A mais recente delas foi a liberação de cultos e missas em igrejas de todo o País em plena pandemia de covid-19. A medida deverá ser revista amanhã pelo plenário do STF.
Nesta segunda-feira, 5, o ministro Gilmar Mendes escancarou o mal-estar ao divergir frontalmente de Nunes Marques na análise de uma ação do PSD contra decreto do governador de São Paulo, João Doria, que proibiu atividades religiosas presenciais. "Quer me parecer que apenas uma postura negacionista autorizaria resposta em sentido afirmativo (de que o decreto de Doria atingiria a liberdade religiosa)", escreveu Gilmar. Para o magistrado, a decisão do colega representa "uma ideologia que nega a pandemia que ora assola o País e (…) um conjunto de precedentes lavrados por este tribunal".
Um dos principais precedentes firmados pelo STF, em abril do ano passado, foi o de que Estados e municípios possuem autonomia para decretar medidas de distanciamento social no enfrentamento do novo coronavírus. A decisão até hoje vem sendo distorcida por Bolsonaro e aliados, na tentativa de eximir o Executivo federal de responsabilidade, culpando governadores e prefeitos pelos efeitos econômicos da pandemia, como o desemprego.
Para ministros do Supremo, o atual entendimento de Nunes Marques colide com o da Corte.
"O novato, pelo visto, tem expertise no tema", disse ao <b>Estadão</b> o decano do STF, Marco Aurélio Mello, em tom irônico. "Pobre Supremo, pobre Judiciário. Aonde vamos parar?". Marco Aurélio se aposenta em julho, abrindo uma segunda vaga na Corte para indicação de Bolsonaro.
Na decisão de ontem, Gilmar rechaçou a legitimidade da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) de entrar com ação no Supremo contra decretos estaduais e governamentais. A liminar de Nunes Marques, que liberou missas e cultos, foi dada justamente numa ação movida pela Anajure. O grupo tem acompanhado com lupa assuntos da chamada "pauta de costumes" que tramitam no STF, como ações sobre descriminalização do aborto, política de ensino sobre "ideologia de gênero" e "orientação sexual" em escolas. Com a pandemia, decidiu também questionar decretos estaduais e municipais de isolamento social.
Gilmar destacou que, em fevereiro, o STF já havia arquivado outra ação da Anajure. A entidade acionara o tribunal para derrubar decretos municipais que impuseram toque de recolher noturno, interrompendo atividades religiosas. Como mostrou o Estadão, por 11 a 0, inclusive com voto de Nunes Marques, o tribunal rejeitou o caso.
"Importa destacar que no julgamento em questão o Tribunal negou provimento ao Agravo por unanimidade. Ou seja, todos os ministros deste STF afirmaram, em uníssono, que a Associação Nacional de Juristas Evangélicos não pode ser considerada entidade de classe", observou Gilmar, escrevendo em letra maiúscula o termo "por unanimidade".
Nunes Marques foi indicado por Bolsonaro para o Supremo com a bênção de Gilmar e de políticos do Centrão, que entraram na mira da Lava Jato. No mês passado, ele se desentendeu com o colega no julgamento em que a Segunda Turma da Corte concluiu que o então juiz da Lava Jato Sérgio Moro foi parcial ao condenar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do triplex do Guarujá.
Após Nunes Marques dar voto favorável a Moro, Gilmar disse que "não há salvação para o juiz covarde" e rebateu o argumento do colega sobre ser garantista. "A combinação de ação entre o Ministério Público e o juiz encontra guarida em algum texto da Constituição? Essas ações podem ser combinadas? Isso tem a ver com garantismo? Nem aqui nem no Piauí", alfinetou Gilmar, em referência ao estado natal do magistrado. "Para aqueles que não me conhecem, ainda tem um pouco mais de 26 anos para me conhecer", rebateu o indicado de Bolsonaro.
<b>Polêmicas</b>
Esta não foi a primeira vez que Nunes Marques se alinhou ao Planalto. Com apenas cinco meses de atuação no STF, o magistrado já deu algumas decisões polêmicas, que contrariaram colegas e agradaram ao governo. Em dezembro do ano passado, por exemplo, ele colocou uma série de empecilhos para a vacinação obrigatória contra a covid-19 em julgamento no plenário. Exigiu que o Ministério da Saúde fosse ouvido e disse que a vacinação compulsória deveria ser a "última medida de combate" contra o coronavírus, após o "esgotamento de todas as formas menos gravosas de intervenção sanitária". O ministro acabou isolado nesses pontos.
Além disso, em decisão de quatro páginas, esvaziou a Lei da Ficha Limpa, reduzindo o período de inelegibilidade de políticos condenados criminalmente. Nunes Marques também autorizou a pesca de arrasto (que usa redes, fazendo arrastão no mar ou no rio) no litoral gaúcho, em uma decisão comemorada por Bolsonaro.
O relator original do caso, Celso de Mello, havia vetado a prática, por considerar que a atividade econômica não pode ameaçar a proteção ao meio ambiente. Com a aposentadoria de Celso, Nunes Marques herdou o caso e liberou a prática. "Parabéns aí ao nosso ministro Kassio Marques por essa feliz liminar. Vamos pescar, pessoal", disse Bolsonaro em vídeo divulgado nas redes sociais em dezembro do ano passado.
As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>