Com uso intenso do plenário virtual, STF faz reforma tributária silenciosa

Enquanto o Congresso Nacional praticamente paralisou a agenda de reformas desde o começo da pandemia da covid-19, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem feito uma reforma tributária silenciosa por meio dos julgamentos no plenário virtual da Corte, destaca o Estadão. Tributaristas e entidades do Direito reclamam, no entanto, da falta de debate e transparência nessas decisões, que têm alterado a jurisprudência sobre a cobrança de diversos impostos.

As principais reclamações dizem respeito às decisões consideradas "confusas" – baseadas em uma miscelânea de votos, em um julgamento considerado desarticulado – e à alteração de jurisprudência em casos tributários de repercussão geral. Matérias envolvendo a cobrança do ICMS estadual, do ISS municipal e de contribuições federais sobre os quais já havia um entendimento baseado em decisões anteriores de cortes superiores – como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o próprio STF – acabaram tendo mudança de interpretação nos julgamentos virtuais em meio à pandemia.

Entre os casos com mudanças em relação à jurisprudência anterior, o Supremo passou a considerar legítima a incidência de contribuição previdenciária patronal sobre o valor pago ao trabalhador referente ao terço constitucional de férias. Até então, a cobrança não era possível.

Houve ainda diversas decisões que mudaram as regras sobre o aproveitamento de créditos de ICMS, alterando até prazos que já eram considerados pelas empresas para o início das compensações. Em uma decisão sobre a incidência do tributo estadual sobre importações de bens por contribuintes não habituais, o STF teve até entendimentos diferentes para a validade de normas idênticas dos Estados de São Paulo e do Paraná.

Em um caso sobre o ISS municipal, o plenário virtual trouxe votos considerando constitucional a cobrança do tributo sobre a atividade de exploração de jogos e apostas (loterias, bingos, pules, sorteios, prêmios), o que iria de encontro à jurisprudência anterior.

Para o presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), Gustavo Brigagão, a superação da jurisprudência – ou "overruling", no jargão do Direito – só deve ocorrer quando há uma situação extrema, com mudança de pressupostos fáticos ou alterações em leis.

"Mesmo que haja um argumento forte, isso não basta para alterar todo um entendimento que vinha sendo aplicado pelos tribunais. Essa jurisprudência é a base da segurança jurídica entre os contribuintes e os cobradores de impostos", diz. "O STF está adicionando mais insegurança a um sistema tributário que já é confuso e complexo. Fundamentos que existiam há décadas foram ultrapassados, com entendimentos opostos. Isso é ruim para o investidor estrangeiro, para o empreendedor brasileiro e para o próprio fisco."

O plenário virtual é uma ferramenta online que permite que os ministros decidam sobre casos com apenas um clique, longe dos olhos da opinião pública e das transmissões da TV Justiça. Seu uso foi intensificado durante a presidência do ministro Dias Toffoli, que aumentou os tipos de processos que podem ser julgados dessa forma. Com o avanço da pandemia, aumentou o número de processos assim analisados.

"Frente à pandemia, o virtual aflorou com eficácia produtiva ímpar", disse ao Estadão o ministro do STF Marco Aurélio Mello. O ministro já foi uma das vozes mais resistentes à nova tecnologia, mas hoje defende a plataforma. "O julgamento virtual, ante a necessidade de conciliar celeridade e conteúdo, é, consideradas as discussões intermináveis no plenário físico, o meio de entregar-se a prestação jurisdicional", afirmou.

No fim de 2020, 11 entidades – incluindo a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – enviaram uma carta aberta ao STF alertando para os "efeitos nocivos dos julgamentos virtuais na adequada formação e compreensão de precedentes em matéria tributária". O documento também foi entregue em mãos ao atual presidente do Supremo, Luiz Fux.

Para Thomaz Pereira, professor de direito constitucional da FGV Direito Rio, o plenário virtual tem qualidades que o físico não tem. "Ele certamente é pior no sentido de ter menos deliberação, mas tem a vantagem de permitir que os outros ministros escrevam seus votos, reagindo ao voto do relator, tendo tempo para isso", disse, destacando que os julgamentos no plenário virtual ocorrem ao longo de várias dias, o que permite que os ministros formem suas convicções nesse período.

No plenário físico, por exemplo, muitas vezes os ministros só sabem como os relatores vão votar na hora do julgamento, o que pode contribuir para os julgamentos serem interrompidos por pedidos de vista. "Como ambos os sistemas têm suas imperfeições, é mais a gente pensar quais os processos que se beneficiariam mais por estar em cada um dos sistemas", comentou.

Procurado, o STF respondeu que o plenário virtual tem ajudado na celeridade das decisões e permitiu que a corte não paralisasse seus trabalhos durante a pandemia da covid-19.

"A ampliação das competências do plenário virtual é recente e, por ser novidade, isso pode gerar dificuldades de adaptação por parte de alguns atores envolvidos. A Suprema Corte compreende e está sempre aberta para sugestões que possam melhorar o andamento dos processos internos", acrescentou o STF.

O Supremo reiterou que o ministro Fux está em constante diálogo com os demais ministros sobre o funcionamento do plenário virtual. "É importante ressaltar que qualquer ministro pode pedir destaque de processos do virtual para julgamento no plenário físico, atualmente realizado por videoconferência por conta da pandemia. Basta um único ministro solicitar para o julgamento ser suspenso e permitir sustentações orais e debates, por exemplo", concluiu.

<b>Como funciona</b>

Os julgamentos no plenário virtual do Supremo Tribunal Federal ocorrem semanalmente. Lá, o relator deposita o seu voto e os seus colegas decidem se o acompanham (com ressalvas ou não) ou se divergem. Advogados gravam suas sustentações orais, que são colocadas à disposição do público e dos ministros. No entanto, diferentemente das sessões presenciais ou por videoconferência, não há espaço para a troca de ideias e debates – e nem para as intervenções por parte dos advogados. "É o pior dos mundos. Se já é muito ruim haver uma superação de decisão em si, imagina esta situação sem debate, em dezenas de julgamentos. Às vezes, são sete ou oito decisões por dia, o que seria impossível no plenário presencial", diz Gustavo Brigagão, presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF). "É óbvio que o ministro não lê tudo. Elogiamos esse lado bom da agilidade e produtividade do STF em meio à pandemia. Mas se for a esse custo, é melhor trazer de novo a lentidão, que estava muito boa."

Entre as decisões consideradas "confusas" pelos especialistas há dois casos sobre a cobrança do ICMS sobre energia elétrica. A decisão sobre a constitucionalidade da cobrança do IOF sobre operações de factoring também teria ficado incompleta. Outro caso cuja decisão não teria ficado clara para os tributaristas diz respeito à inclusão dos valores retidos pelas operadoras de cartão de crédito e débito na base de cálculo do PIS/Cofins devido pelas empresas que recebem por esses meios de pagamentos. Decisões sobre imunidade no ITBI e seletividade no IPTU também suscitaram dúvidas entre os especialistas.

Para o tributarista Roberto Duque Estrada, sócio da BDE Advogados, enquanto o Congresso se enrola nas diversas propostas de reforma tributária que tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado, o STF tem tocado uma pauta tributária que estava represada há anos. "O problema é que não há um grande tributarista entre os ministros do STF. O último ministro com destaque nessa área foi o Teori Zavascki (falecido em 2017). Mesmo com uma fragilidade muito grande em relação a isso, o STF resolveu aproveitar a pandemia para limpar a pauta", avalia.

Os advogados questionam ainda o fato de diversos ministros contarem em seus gabinetes com assessores que na verdade são procuradores da Fazenda Nacional ou das Fazendas estaduais cedidos ao STF. "São profissionais qualificados, mas que ainda têm suas posições jurídicas vinculadas a seus órgãos de origem. Então é claro que vão ter posição contrária ao contribuinte." As informações são do jornal <b>O Estado de S. Paulo.</b>

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