Estadão

63 mil detidos em dez meses: o controvertido plano de El Salvador contra o crime

Um em cada cem salvadorenhos presos num período de 10 meses. Esse é o resultado da nova política de segurança de El Salvador para combater grupos criminosos que tomavam conta de diversas regiões do país até o ano passado.

Possibilitado pela construção em tempo recorde de uma prisão para 40 mil pessoas e pela falta de ordens judiciais para as detenções na grande maioria dos casos, o plano do presidente Nayib Bukele tem despertado fortes críticas de organizações de direitos humanos e preocupações sobre as tendências populistas do seu governo.

Internamente, no entanto, o plano impulsionou a popularidade do presidente, que é apoiado por 90% da população, segundo pesquisas de opinião.

<b>Estado de exceção</b>

Em março de 2022, 87 pessoas foram mortas em 48 horas numa escalada da violência urbana em El Salvador. Em resposta, Bukele decretou estado de exceção e anunciou uma nova política de segurança para conter os grupos criminosos. Atualmente, 62.975 pessoas estão presas sem nenhuma ordem judicial, num país com 6,3 milhões de habitantes.

A taxa de encarceramento no país, de 600 presos por 100 mil habitantes, é uma das maiores do mundo. Para efeito de comparação, é quase o dobro que a do Brasil, que em 2021 era de 318 presos por 100 mil habitantes.

Os grupos criminosos do país, também conhecidos como "maras", eram considerados, de maneira geral, os principais responsáveis pelos altos índices de violência. Eles exercem um controle territorial e se financiam por meio da extorsão e do tráfico de drogas. De acordo com o grupo International Crisis Group, entre 1993 e 2017, ao menos 93 mil homicídios ocorreram em El Salvador e a metade deles é atribuída a esses grupos.

<b>Denúncias</b>

Organismos de direitos humanos denunciam que as forças de segurança prendem as pessoas na saída do trabalho e na rua sem apresentar nenhuma ordem judicial, e ao menos 1.600 menores de idade estão entre os presos. Mas o apoio da população fortalece Bukele. Para a Human Rights Watch, o perigo desse cenário é que a prática se espalhe para outros países.

"Bukele é bem popular em El Salvador e controla a mensagem do que está acontecendo de maneira que incentiva outros governantes da região a copiarem o modelo. A exportação do modelo de Bukele é um risco para a região", afirma a diretora da HRW para as Américas, Tamara Taraciuk.

Diariamente, denúncias de prisões ilegais chegam a grupos de El Salvador, como o Cristosal, que fornece assistência jurídica e realiza informes sobre a deterioração dos direitos humanos no país. De acordo com um relatório do grupo, as prisões "têm como base a aparência física ou o fato de as pessoas viverem em comunidades de baixa renda ou controladas pelos grupos criminosos".

Parentes de detidos contaram ao Cristosal que os policiais e soldados vistoriaram os corpos das pessoas procurando qualquer tipo de tatuagem para prendê-las, "como se essa fosse a prova de que pertenciam aos grupos criminosos".

No dia 8 de agosto de 2022, o portal El Faro publicou um levantamento apontando que de 690 prisões feitas sem evidências, 160 tiveram base em "aparência suspeita", 73 em "aparente nervosismo" e 34 em "denúncias anônimas".

"Essa é uma política de segurança improvisada, pouco transparente, já que as estatísticas criminais foram declaradas sigilosas, que não respeita os direitos humanos. Está fincada em uma política de comunicação efetiva, que leva ao respaldo de boa parte da população", explica o advogado Ricardo Iglesias, que atua na Cristosal.

Segundo a última pesquisa da CIG-Gallup, feita no dia 1.º de fevereiro, 90% dos salvadorenhos avaliam a gestão Bukele como boa ou muito boa. E a insegurança, que há um ano era tida como o principal problema do país pela população, agora é considerada um problema por apenas 4% dos entrevistados.

"Muitas pessoas foram afetadas por essa onda de delinquência e, aparentemente, esses números baixaram. As pessoas se sentem mais seguras. Muitos problemas afetam o país, como o alto preço da cesta básica, o alto índice de desemprego e outros tantos que vemos na América Latina, mas a insegurança era um grande problema aqui e esse governo se dedicou em acabar com isso", diz a jornalista María (nome fictício por razões de segurança).

<b>Avanço antidemocrático</b>

Iglesias detalha o plano de comunicação do governo e como isso dificulta a contestação à nova política de segurança. "A secretaria de comunicação funciona como um tanque de propaganda, com muitos recursos. Diminuíram a verba destinada para as áreas de saúde e educação e redirecionaram à pasta de Comunicações da presidência."

Nesse contexto, o papel das instituições nacionais de proteção seria um contrapeso importante no país, mas elas não estão funcionando. "Bukele começou tomando as instituições democráticas e depois aproveitou esse controle para adotar um regime de exceção", explica Tamara Taraciuk.

"Os milhares de habeas corpus pedidos não foram respondidos ou foram recusados, a Promotoria de Direitos Humanos não se manifestou e as autoridades de proteção à infância não fizeram nada. A Sala Constitucional está controlada pelo Executivo. Acredito que esse regime será prolongado por muitos meses, até as eleições do ano que vem provavelmente", afirma o advogado Iglesias.

María reconhece que há abusos, mas ainda fica em dúvida se isso é suficiente para mudar a política de segurança. "Aqueles que reclamam são parentes de pessoas que foram presas de forma arbitrária, sem razões. Isso realmente aconteceu. Mas ainda fico muito dividida, preciso continuar acompanhando o que vai acontecer."

Bukele defende sua política contra a criminalidade, dizendo que seu país agora é um dos mais seguros da região, e enaltece a construção do Centro de Confinamento do Terrorismo – a nova megaprisão de El Salvador. "É uma obra gigantesca realizada em apenas sete meses e uma peça fundamental para ganhar por completo a guerra contra os criminosos", escreveu o presidente em seu Twitter no marco da inauguração do centro de detenção de segurança máxima.

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