Variedades

Fernanda Torres quebra regras e domina o palco na Flip

O espírito irreverente, sagaz, crítico e, por que não?, moleque finalmente baixou na Flip em seu último dia. Voltou em um corpo franzino, cabelos negros, coxas brancas, grandes olhos curiosos e trajando um vestido de bolinhas: a atriz e escritora Fernanda Torres quebrou o protocolo e, fiel à sua dinastia artística, dominou o pequeno palco da feira literária, em seu último dia, quando se reuniu com o peruano Daniel Alarcón, sob a astuta mediação de Ángel Gurría-Quintana.

Fernandinha, que contou com a cumplicidade da mãe, Fernanda Montenegro, presente na plateia, tomou a palavra logo no início do encontro, estabelecendo um diálogo crítico devidamente aceito por Alarcón e brindando a plateia com observações inteligentes e provocantes.

A sessão começou comportada, insinuando a habitual normalidade. Gurría-Quintana, veterano entre os mediadores da Flip por conta de sua competência, questionou o peruano sobre a construção de seu bem resolvido romance, À Noite Andamos em Círculos (Objetiva). “O título faz referência a Guy Debord e sua crítica sobre o conceito de espetáculo, algo que parece descrição do meu protagonista, o dramaturgo Nelson, que não entende nada da vida a não ser o que é filtrado pelos espetáculos de teatro.”

Alarcón tem uma curiosa trajetória – nascido em Lima, logo passou a viver nos Estados Unidos, estabelecendo um desterro literário. “Minha educação foi em inglês e só aprendi espanhol aos 8 anos. Hoje, escrevo em inglês, mas minha temática é peruana, especialmente o humor.”

A condução, nesse instante, foi tomada por Fernanda que, depois de explicar a origem de seu romance Fim (Companhia das Letras) – o que era para ser um conto logo se transformou em um romance sobre a finitude de cinco amigos -, ela iniciou um debate sobre a obra de Alarcón, especialmente o fato de o enredo tratar de teatro.

“Você escreveu sobre algo que está fora de moda que é o ator. Veja só, se hoje falamos sobre literatura, um assunto sério, três dias atrás, eu estava fazendo strip-tease na boate La Conga”, disse a atriz, fazendo a plateia rolar de rir ao contar sobre a cena que gravara para o seriado Tapas & Beijos, da Globo. “Sou mais valorizada aqui, na Flip, como escritora: ator parece não valer nada, enquanto um autor parece valer muito. Mesmo quando participo de um espetáculo mais pesado, como A Casa dos Budas Ditosos, é considerado pornografia de nível porque foi escrito por João Ubaldo Ribeiro, um grande e renomado autor.”

Fernanda provocava risos, mas era perceptível o tom sério de sua crítica, apontada para o excessivo mercantilismo que cerca sua arte. “O que me levou à literatura é a crise do teatro e do cinema, atualmente muito presos ao entretenimento que garante sua sobrevivência.”

Um sopro de esperança, no entanto, foi apontado pela própria atriz. Na noite anterior, ela e sua mãe rumavam para um encontro quando se perderam nas ruas pedregosas de Paraty. Quando perceberam, estavam diante de uma fila e lá encontraram Débora Bloch. “Ela nos convenceu a entrar”, disse Fernandinha, que estava na Casa da Cultura, local de uma das ramificações da Flip, a FlipMais.

Naquele sábado, a atração era o ator inglês Tim Crouch, que apresentaria sua especialidade, o espetáculo de um homem só. No caso, ele viveria Malévolo, personagem da clássica comédia Noite de Reis, de Shakespeare, servente que acerta as contas por meio de uma história de assédio moral da qual faz parte, utilizando um discurso retórico ao mesmo tempo divertido e perturbador de um homem à deriva diante de um público cruel.

“Crouch conseguiu atingir o sublime com sua interpretação, ao mesmo tempo em que questionava a plateia sobre diversas dúvidas morais”, comentou a atriz. Fernandona, aliás, teve participação ativa no espetáculo, quando cedeu uma de suas meias ao ser solicitada pelo ator britânico.

Ao utilizar o mundo das artes cênicas como pano de fundo de seu romance, Daniel Alarcón procurou valorizar a profissão de ator. “Teatro nasce a partir do impulso, da disposição em se comportar mal”, comentou. “É assombroso estar diante de um público e assumir o erro que marca determinado personagem. O ator não pode ter medo de ser alguém ao criar um mundo novo. Outra razão pela qual escolhi o teatro é porque se trata de uma arte compreensível por todos justamente por ser uma representação metafórica da vida. Quando convidamos crianças a encenar, elas facilmente conseguem ver um castelo à sua frente, mesmo nada existindo. Trata-se da criação coletiva de um instante.” “Um delírio coletivo”, completou Fernanda.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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