Ele conta, em Un Voyageur – Um Viajante, seu último encontro com o amigo François Truffaut. Marcel Ophuls se lembra. Truffaut, já terminal, despediu-se dele com um pedido – “Prometa-me que vai escrever sua autobiografia.” Passaram-se quase 30 anos – Truffaut morreu em outubro de 1984 -, mas Marcel Ophuls cumpriu, enfim, a promessa. Ou, como ele declarou no Festival de Cannes do ano passado, em que Un Voyageur integrou a seção Quinzena dos Realizadores, o mais próximo que conseguiu chegar da autobiografia foi neste belo filme que será uma das pérolas do 18.º Festival de Cinema Judaico, que começa nesta terça-feira, 05.
O momento é delicado, com um atrito nas relações entre Brasil e Israel, mas o Festival de Cinema Judaico vai além disso. Nesses 18 anos, o festival tem mostrado a produção audiovisual de Israel, mas há um cinema judaico que se faz através do mundo. As próprias histórias da Shoah, que já parecem mapeadas, esgotadas, não cessam de surpreender. Há sempre um dado novo, um depoimento novo para tentar iluminar, no nosso imaginário, como aquele horror foi possível. Nessa via, Um Viajante vem se inscrever de uma maneira muito especial.
Ao público da Quinzena, Marcel fez uma declaração curiosa – disse que o tema do filme é a sua boca que não para de falar e era importante manter o foco para que não fosse devorado pelas próprias palavras. O viajante é ele – na vida, no cinema. Marcel Ophuls faz justiça a todos os que o ajudaram, amaram, sustentaram na sua trajetória. O pai, Max Ophuls, bien sur, mas também Jeanne Moreau, Stanley Kubrick, Woody Allen, Marlene Dietrich. E Truffaut. Marcel Ophuls tornou-se uma referência, um marco do documentário. Fez filmes seminais sobre o genocídio judeu. Ergueu o dedo acusador para denunciar o colaboracionismo. Como Shoah, de Claude Lanzmann, Le Chagrin et la Pitié e Hotel Terminus, sobre o sinistro Klaus Barbie, são obras completas. Grandes experiências estéticas, políticas – e humanas.
Marcel Ophuls não faz outra coisa senão tentar decifrar o mundo em seu cinema, mas para isso ele precisa se decifrar. Um viajante. Na breve entrevista que se seguiu à apresentação de seu filme no Palais Croisette, sede da Quinzena – Hotel Terminus tinha passado em Un Certain Regard, em 1988 -, Marcel confessou seu sofrimento diante da página branca. Ele até tentou escrever um livro, mas terminou percebendo que seria melhor (mais fácil?) fazer um filme. Mas não um documentário convencional. Conta histórias – anedotas? O título em inglês é Aint Misbehavin, algo como não estou me comportando mal. Lembra os conselhos que recebeu de Bert(old) Brecht e de um almoço com tio Otto (Preminger) em Nova York. Falaram do tesão do grande diretor pela stripper Gypsy Rose Lee (com quem teve um filho) e nada de filmes.
Marcel, às vezes, se pergunta sobre a sinceridade dos elogios dos críticos à sua obra. “Não será por que sou filho do grande Max Ophuls?” E será sempre grato a Woody Allen, por haver incluindo Le Chagrin et la Pitié – The Sorrow and the Pity – em Annie Hall/Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, contribuindo para a popularidade do filme na América. Ele não resiste, no filme, em ler a carta que Allen lhe enviou, dizendo que Le Chagrin é uma grande obra de arte. O velhinho (está com 86 anos) pode estar ficando autoindulgente, mas certamente não é gagá. E se suas ficções iniciais eram medíocres – o episódio de O Amor aos 20 Anos -, Truffaut estava certo em encorajá-lo. Os documentários da grande fase são mesmo obras de arte. Marcel Ophuls só precisava encontrar sua forma de expressão. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.