O sol de Flores do Pajeú, no sertão de Pernambuco, devia acabar com tudo mesmo. Ou era isso ou era a vida que não parecia muito generosa quando Muacy veio ao mundo. Seu pai, no mesmo dia, se mandou para virar caçador de cangaceiros, deixando os cinco filhos puxando a saia da mãe. Três anos depois, Muacy batia latas no quintal como se elas fossem os pratos de uma banda militar quando os adultos vieram lhe chamar. Levaram ele para dentro de casa e o deixaram às lágrimas ao lado do corpo da mãe morta. Um choque que ele não esqueceria. Antes de saber o que era vida, Muacy conhecia a morte. Sorte que, antes de tudo, já sabia o que era a música.
E era música que não acabava mais, uma inundação que nenhum adulto explicava de onde saía. Aos 3 anos, o moleque regia a orquestra imaginária de meninos nus das ruas de Flores do Pajeú. Aos 9, tocava trombone, trompete, clarinete, saxofone, percussão, violão, banjo e bandolim – todos reais. Aos 13, recebia salário como baterista do Cine São José. Perto dos 30, começava a dar aulas para João Donato, Carlos Lyra, Baden Powell, Roberto Menescal e Dori Caymmi. Antes dos 50, fazia os jazzistas reavaliarem tudo o que pensavam conhecer sobre o Brasil. E quando morreu, aos 80, Muacy já era Moacir Santos, o homem que derrubou todas as previsões do Pajeú.
A obra de um dos maiores casos de compositores brasileiros ainda não conhecidos em larga escala volta a ser revista, analisada e lançada este mês, quando três projetos surgem ao mesmo tempo. O livro Moacir Santos – Ou os Caminhos de um Músico Brasileiro trata-se da publicação de uma tese de doutorado da musicista e pesquisadora Andrea Ernest Dias. Não exatamente uma biografia, como ela diz, mas “um livro com dados biográficos”.
É um pouco mais do que isso. Andrea, a Deda, escava bem a ainda pouco contada história de Moacir, desde os dias difíceis em Flores até sua primeira redescoberta nos anos 2000. “Quando ele foi para os Estados Unidos, muitos músicos falaram que Moacir levava informações da música brasileira que a bossa não havia levado. O jeito que usava, da forma dele, o frevo, o maracatu, a ciranda…”, conta ao Estado. E, mais técnica, se debruça sobre as características do “estilista” de gêneros afro-brasileiros. “Fica clara a opção de Moacir Santos por estilizar os padrões da cultura musical afro-brasileira, dando ao conjunto de Coisas (nomes de suas obras principais) uma caracterização única na sonoridade instrumental dos anos 1960, alcançada tanto pela associação da instrumentação usual das bandas de música e big bands jazzísticas à percussão típica dessa tradição cultural (atabaques, agogôs, afoxés, etc.) quanto pelo tratamento polirrítmico dispensado ao contraponto”, escreve.
Seus garimpos trouxeram três músicas inéditas que também acabam de ser gravadas em um disco prestes a sair. Muacy, o primeiro nome do maestro antes do batismo oficial, tem produção de Andrea, do percussionista Marcos Suzano e do pianista Paulo Braga, que também tocam no trabalho. São dez temas, como Coisa Nº 1, Outra Coisa e A Santinha Lá Da Serra. As músicas registradas pela primeira vez são The Beatiful Life (ouça no portal do Estadão), com Teco Cardoso no sax barítono; Love Go Down e Sambatango, todas finalizadas nas partituras e deixadas com títulos pelo maestro.
A terceira frente é um festival de música dedicado à obra do compositor, que começa nesta quarta-feira, 6, e vai até a noite de sábado, 9, no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio, antes de seguir para Brasília e Recife. Será a segunda edição, ampliada em comparação com a primeira, com mesas redondas e shows de Carlos Malta; quarteto do baixista Sizão Machado; Sambajazz Trio com Raul de Souza; Banda Ouro Negro, de Mario Adnet e Zé Nogueira; Rique Pantoja & L.A. Friends e o flautista norte-americano Hubert Laws.
Moacir Santos era aquilo que tocava. O abandono e a alegria do menino estão presentes em sua música, mas não só. Seus grandes temas – sendo Nanã ou Coisa nº 4 o maior e mais gravado deles – parte de princípios melódicos simples. É uma ideia curta que se repete e se resolve com rapidez, o que se revela só o começo.
Sobretudo nos conceitos rítmicos, Moacir não é para qualquer um. “Um seis por oito vira um dois por quatro de repente com toda a carga africana que ele trazia.
A gente tem de prestar atenção”, diz Raul de Souza. “Eu o adorava e o respeitava, mais do que as palavras podem dizer. Sua música era como um milagre, maravilhosa, complexa e simples”, disse o saxofonista norte-americano Steve Huffsteter.
O pesquisador Zuza Homem de Mello escreveu o seguinte em seu artigo republicado no livro Música com Z: “Na obra do maestro, o primitivo encontra o futuro. O ontem, o amanhã”. E o compositor gaúcho Cristiano Figueiró resumiu uma sensação comum diante de Muacy: “Apesar de não conhecer, parece que eu sempre ouvi essa música”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.