Variedades

Infância difícil é retratada no Festival de Veneza

Infância e juventude complicados entraram em pauta no Festival de Veneza. Trabalhando em situações e com linguagens bem diferentes, tanto o francês Le Dernier Coup de Marteau, de Alix Delaporte, quanto o turco Sivas, de Kaan Mudjeci, enfocam as dificuldades e desafios do crescimento. O público gostou muito do primeiro, enquanto o segundo foi recebido com um misto de aplausos, vaias e até alguns gritos de protesto. Veremos as razões.

Le Dernier Coup de Marteau (algo como O Último Toque do Martelo) põe em cena um garoto de 14 anos que vive com a mãe doente e deve enfrentar uma série de circunstâncias complicadas. Está enamorado de uma vizinha, filha de uma família espanhola, que parece não ligar muito para ele. Deseja fazer carreira como jogador de futebol e precisa apresentar-se numa “peneira” para tentar ser selecionado para um clube profissional. Por fim, deve enfrentar o pai, que nunca conheceu e é um maestro de música clássica de passagem pelo local. O título se refere à 6ª Sinfonia de Mahler que, diz-se, eliminou o terceiro toque do martelo para que não soasse como o destino irremediável batendo à porta.

A metáfora é clara. Fazemos nós o nosso destino, não existe nenhum deus entediado a determinar nossos caminhos para seu gozo próprio, como pensavam os gregos. Estes tinham senso do trágico, algo que a modernidade perdeu (ou ganhou, segundo o ponto de vista). Achamos que controlamos tudo, ou, pelo menos, boa parte das nossas ações. A trajetória de Victor (Romain Paul) é um pouco essa luta contra a adversidade. Apesar da pouca idade, ele deverá tomar o destino em suas mãos, em meio à doença da mãe (Clotilde Hesme), a indiferença do pai, a pouca disponibilidade da namorada e o desafio do futebol.

A história se insere na tradição francesa das crianças protagonistas, oprimidas pelo mundo adulto, como a do garoto Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), alter ego de François Truffaut em Os Incompreendidos. Truffaut, além da série Doinel (que se estende por vários filmes, da infância à idade adulta, sempre com o mesmo ator), também dirigiu um clássico do gênero, O Garoto Selvagem. A cineasta Alix Delaporte admite a influência e diz que conversou com Jean-Pierre Léaud longamente. Mas entende que seu trabalho tem outro alcance: “Acho que é um filme sobre como se constrói uma vida, como deixamos nossos filhos partirem para que se tornem pessoas autônomas”. De fato, o foco está sempre sobre Victor, que rende muito bem como ator juvenil. O filme tem o frescor das obras jovens. Não se pode dizer que ostente muita profundidade ou qualquer exibicionismo cinematográfico. Deixa-se ver. É bonito.

Já Sivas é obra de outra voltagem, sem que isso implique julgamento de qualidade. Nota-se, de início, a influência do mais conhecido diretor turco da atualidade, Nuri Ceylan, tanto pelos planos abertos sobre a região desolada do campo turco, como pela própria região escolhida para ambientar a história, a Anatólia.

Uma sinopse inocente diria que se trata da história da amizade entre um menino e um cão. Só que Siva não é um cão como Lassie ou Rintintim. Siva é um cão de combate. Derrotado numa dessas lutas, Siva será abandonado pelo dono, que o dá como morto. É adotado por Aslan, um garoto de 11 anos. Aslan tem lá os seus problemas, uma menina que não quer saber dele e uma peça de teatro na escola, na qual lhe deram o pior papel. Mas, desde que encontra o cão ferido e o adota, seu universo passa a girar em outra dimensão. Acontece que Siva é um cão de luta e seguirá sua vocação, para desgosto do menino.

Antes de fazer o filme de ficção, Mujdeci rodou um documentário sobre o combate de cães no interior da Turquia, algo tão popular e ilegal quanto a nossa briga de galos. O cineasta, portanto, encontrava-se muito bem informado sobre o mundo em que iria situar a sua ficção, além do que deu preferência a um elenco formado nos vilarejos da Anatolia, trabalhando com atores não-profissionais. Há cenas de um certo brutalismo, excessivas, com a câmera muito próxima à luta de cães.

Provavelmente, isso lhe permitiu encenar essas brigas sem que elas efetivamente ocorressem. Mas o tratamento é naturalista e os cachorros aparecem feridos. Isso bastou para que parte da plateia se indignasse com o filme e o diretor.

Curiosamente, na véspera, o japonês Nobi, com suas cenas de canibalismo e membros amputados, não despertou os mesmos sentimentos. Pelo contrário, foi acolhido com gritos de admiração. Hoje em dia as pessoas parecem mais sensibilizadas com animais do que com seus semelhantes.

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