Variedades

Espíritos gráficos de vida e obra de Gabo

Um romance gráfico sobre a vida do escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927- 2014) teria necessariamente de respeitar um de seus grandes “mandamentos” conceituais: “Vida não é aquilo que vivemos, mas o que lembramos e de como lembramos para contar”.

A história em quadrinhos Gabo – Memórias de Uma Vida Mágica (lançada no Brasil pela Editora Veneta) escolhe o que é lembrança proeminente na trajetória de Gabo para contar sua saga. Tem roteiro de Óscar Pantoja (jovem autor premiado com o Prêmio Alejo Carpentier de 2001 com o romance O Filho) e ilustrações de Miguel Bustos, Felipe Camargo, Tatiana Córdoba e Julián Naranjo. Foi lançada nos países de língua espanhola no ano passado pela Librería Sins Entido. Cada capítulo tem uma cor: ocre, azul, rosa e verde. Cada cor é representativa de um epicentro dramático.

A história começa com as ideias que deram origem ao clássico Cem Anos de Solidão (cuja primeira edição se deu em Buenos Aires, em 1967). Isso exige a remontagem da vida do artista desde o nascimento em Aracataca, Colômbia, 1927, numa narrativa de flashbacks que se amoldam à construção literária. Passa pelos primeiros passos na vida sob a guarda dos avós, Don Nicolás Márquez, coronel da Guerra dos Mil Dias (guerra civil colombiana que durou de 1899 a 1902), e dona Tranquilina Iguarán, até a lua de mel com Mercedes (seu grande amor), a Revolução Cubana e a conquista do Nobel, em 1982.

A infância chega plena de eventos mágicos, como um padre que levitava, um massacre de três mil trabalhadores na praça central, fantasmas sem cabeça, o doce de goiaba da avó.

O jornalismo aparece como fonte primordial de inspiração e método. A dificuldade de viver da literatura, a dependência de prêmios literários, os discursos, a compra de um modesto automóvel Opel 62 Sedan: a história em quadrinhos passeia por todos os momentos-chave, mas se ressente um pouco de engrená-los com alguma dramaticidade. Às vezes, tudo surge meio mecanicamente.

Márquez deixou sua própria autobiografia, Viver para Contar, mas o que Óscar Pantoja faz é mesclar o tempero de como o realismo mágico se apresentou ao autor em diferentes etapas de sua vida e como suas influências mais determinantes (como Juan Rulfo, William Faulkner e Franz Kafka) se amalgamaram no processo de amadurecimento do escritor – e na gestação de sua obra-chave.

“É como colar uma porcelana quebrada com uma cola que faz com que suas rachaduras desapareçam à medida que as peças se juntam”, diz Óscar Pantoja.

O gibi impôs uma homogeneidade de estilos entre os quatro diferentes ilustradores, para garantir a unidade do trabalho. A escolha do traço comum partiu de uma simplicidade quase naïf, ingênua, uma ilustração limpa, sem demasiados elementos, própria do estilo de certa ilustração popular (como nas nossas xilogravuras nordestinas). Isso parece ter sido uma escolha, para garantir o toque de “realismo mágico”. O que, por vezes, soa limitador, porque decerto os autores têm estilos muito diferentes entre si e buscam convergir para não causar ruído de leitura.

O jovem Gabo é colocado, nesse romance gráfico, entre dois mundos: a sofisticação europeia, onde viveu (chegou a cobrir o festival de Veneza como jornalista), e aquele mundo duro que desmoronou na Colômbia, atrás de si, enquanto se tornava lenda pelo mundo da literatura. A ênfase no desenho da paisagem, da terra, parece por vezes buscar impor uma familiaridade para quem busca compreender a escrita de Gabo. O retorno a Aracataca, a descoberta de uma fazenda chamada Macondo, os afetos.

“Em cada linha que escrevo tento sempre, com maior ou menor sorte, invocar os espíritos esquivos da poesia, e tento deixar em cada palavra o testemunho de minha devoção por suas virtudes de adivinhação, e por sua permanente vitória contra os surdos poderes da morte”, disse Gabo na Suécia, ao receber o Nobel. O gibi, às vezes, consegue invocar também alguns espíritos.

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