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Hóspede por uma Noite fala de um mundo à beira do abismo

Num mundo dominado por um cínico laicismo e pela uniformização cultural, uma voz lúcida como a do escritor Sch. I. Agnon (1887-1970), premiado com o Nobel em 1966, talvez pareça um tanto dissonante, mas é extremamente oportuna a tradução de seu romance Hóspede por Uma Noite, publicado em 1939, às vésperas da Segunda Guerra. Três anos antes de ser implementada pelos nazistas a “solução final”, determinando o extermínio dos judeus, Agon, como um profeta, antecipou os horrores desse mundo esfacelado e regido por bárbaros. E fez isso sem secularizar sua linguagem, profundamente embebida de simbolismo religioso, apesar do vínculo estreito com a modernidade literária – laica, evoque-se – que levou críticos a comparar seus livros aos de Kafka e Joyce.

Em primeiro lugar, Agnon não foi autor de um só gênero. Em 60 anos de atividade literária, escreveu contos, novelas, romances, peças e, ao contrário de seus contemporâneos modernos, tinha claro que a literatura pode ser um veículo de formação, um complemento espiritual aos livros da infância do escritor, das Sagradas Escrituras aos contos populares e hassídicos.

Portanto, a despeito da ligeira proximidade formal com Kafka, a busca da transcendência e a tentativa de levar o leitor contemporâneo a lidar com a questão religiosa em tudo se contrapõem à desesperança do mundo moderno. Ele não nega os temas da modernidade – há erotismo e paixão em seus livros, e mesmo uma dose de perversidade nas metáforas visuais que associam mutilações a defeitos morais -, mas os dilemas psicológicos e filosóficos de seus personagens servem a um propósito: mostrar que o crepúsculo da tradição está intimamente ligado à aurora da barbárie.

Não por outra razão, narrador e autor se confundem em Hóspede por Uma Noite. Às questões pessoais ele responde com parábolas e representações metafóricas que o leitor deve decifrar com os próprios instrumentos. Se o leitor tiver conhecimento das tradições religiosas, tanto melhor. Se não for o caso, a tradução de Zipora Rubinstein pode ajudar não iniciados a entender o significado pouco evidente dos nomes próprios que Agnon usa para definir personagens e lugares. A própria cidade que o narrador de Hóspede por Uma Noite decide revisitar em busca de um reencontro com a infância, Szibusz, em hebraico (schibusch) é um termo cuja tradução (corrupto, defeituoso, arruinado) resume a intencional reticência agoniana que deixa seus leitores à mercê da própria interpretação.

O narrador conserva algumas características do autor, mas Hóspede por Uma Noite não é exatamente um relato autobiográfico. Agon, de fato, revisitou a cidade em que passou a infância na Galícia (então pertencente ao Império Austro-Húngaro, hoje Ucrânia) apenas para constatar que esse mundo já estava desmoronando no entreguerras. O narrador encontra em Szibusz uma sociedade doente, prestes a ser subjugada por regimes totalitários e avessa às tradições religiosas. Cabe ao narrador visitante a missão de restaurar a vida espiritual numa província que abraçou o materialismo e desprezou o Beit Midrash (casa de estudos onde se pode ler o Talmude, a Torá e outros livros sagrados).

Reconhecido pelos mais velhos, o narrador ganha a chave do Beit Midrash e os moradores da cidade voltam a frequentar o local, ainda que atraídos não pela autoridade rabínica, mas pelo aquecimento da sala, motivo nada desprezível no inverno rigoroso de Szibusz (mais uma metáfora do desamparo). No entanto, até um homem justo pode sucumbir ao peso da responsabilidade de renovar o vínculo de uma sociedade em crise com o transcendente. O narrador, simbolicamente, acaba perdendo a chave do Bei Midrash. Pioneiro no uso da intertextualidade, Agnon dificulta a tarefa do leitor de identificar suas fontes – um excerto bíblico pode se transmutar numa fábula e o cânone sagrado passa a se confundir com a sintaxe moderna, o que faz do escritor uma voz original até mesmo no pseudônimo que arrumou – seu nome verdadeiro é Shmuel Yosef Czaczkes.

Ele adotou o sobrenome Agnon com base na sua primeira história publicada em Israel, Agunot (Esposas Abandonadas), nome que define a condição das mulheres renegadas por seus maridos e deixadas sem o documento de comprovação do divórcio. Condenadas a uma situação legal precária, limbo no qual Agon provavelmente também se via, elas, como o autor, não pertencem nem ao mundo arcaico nem ao moderno. Isso explica, em parte, a ambiguidade do escritor.
Destinado a ser um rabino na Galícia, ele termina por se tornar um escritor moderno (que abandona as práticas religiosas) em Israel, ao emigrar para a Palestina em 1908, em parte por sua adesão ao sionismo. Para quem frequentava simultaneamente o Beit Midrash (por influência paterna) e lia os clássicos alemães (por indicação materna), era natural que a voz narrativa de Agon buscasse um equilíbrio entre o discurso religioso sereno e íntegro e a perturbadora fragmentação cubista que marca a literatura de seus contemporâneos. Berta Waldman, a propósito, observa que essa voz narrativa “não se eleva, não apresenta pontos enfáticos, desconhece vestígios da histeria neorromântica ou expressionista, apoiando-se sempre na sobriedade da prosa rabínica”.

No entanto, a literatura de Agnon se move, como a Terra. Há uma interessante comparação feita pelo rabino Jeffrey Saks entre Agnon e Dante. Assim como Dante forçou o leitor a ingressar no mundo da cristandade do século 13, observa Saks, Agnon encontrou nas Escrituras a chave para a ressurreição da linguagem mítica na modernidade. Embora comparado a Kafka, lembra o rabino, Agnon insistia que não leu nem foi influenciado pelo escritor de Praga. O simbolismo enigmático de Agnon, segundo Saks “não é meramente um método privado de transformar a realidade num instrumento literário”. E conclui: “Tanto em Dante como em Agnon, esses são símbolos religiosos palpáveis, transferidos para o campo literário”.

Com efeito, Agnon se apresentava como um autor representante dos judeus, fundindo biografia e criação literária não como recurso estilístico, mas como prova histórica. Ele associava até mesmo a destruição dos dois templos bíblicos à queda das suas duas casas no curto espaço de cinco anos – a primeira em 1924, quando um incêndio consumiu sua biblioteca e manuscritos na pequena Homburg (Alemanha), e a última em 1929, em Jerusalém, durante os conflitos com os palestinos.

Testemunho da desolação espiritual de pessoas expulsas de seus lares e condenadas a vagar, a literatura de Agnon mantém viva a história das comunidades onde viveu. Mais que isso: é um sinal de alerta para um mundo que jogou a história no lixo e condenou a deidade ao exílio.

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