Com Sinfonia da Necrópole, a diretora Juliana Rojas faz graça onde menos se espera – no interior de um cemitério. Mais ainda, transforma essa comédia necrológica em autêntico musical, daqueles de verdade, em que os atores cantam suas falas e podem dialogar em escalas musicais ascendentes e descendentes. Por sorte, não o tempo todo, diferentemente dos musicais de outrora.
Nessa comédia, o personagem principal é Deodato (Eduardo Gomes), que arrumou emprego de coveiro mas morre de medo de cadáveres. Ele só se anima quando chega uma nova gerente ao cemitério, disposta a repaginá-lo, colocando-o no patamar dos grandes negócios graças a técnicas gerenciais contemporâneas.
Nesse ponto, notamos que a comédia não se esgota em si mesma. Ora, comédias são feitas para rir, e esta cumpre com seu dever principal. Mas são melhores ainda quando, após o riso, sente-se que contém embutida uma sutil crítica ao chamado status quo. Grandes comédias desempenham essa função, da antiguidade aos dias de hoje. Daí a frase latina “ridendo castigat mores”, atribuída a diversos autores, que significa simplesmente que o riso castiga (ou corrige) os costumes.
Há quem diga mesmo que o riso contém uma acidez dissolvente que a denúncia séria não possui. Deixando a polêmica para os doutos, vemos que tudo, em Sinfonia da Necrópole, é disposto para desconstruir alguns tabus. O primeiro deles, naturalmente, a própria morte, tratada com temor reverencial mas aqui desmistificada como dado natural da nossa condição. O coveiro medroso é apenas um desses pontos estranhos. O outro, o consciencioso administrador do campo santo, que intui estar perdendo o pé da modernidade e por isso chama alguém capaz de ajudá-lo na tarefa de transformar o cemitério à moda antiga em exemplo de modernidade. Leia-se: em empreendimento lucrativo.
Com essa função entra em cena a espevitada Jaqueline (Luciana Paes), uma funcionária do Serviço Funerário disposta a fazer carreira. E, como tal, promove uma verdadeira repaginação do cemitério, com a cumplicidade de Deodato que, claro, tem outras razões, além das profissionais, para procurar a companhia da moça. O toque sutil da diretora é fazer da remodelagem do cemitério uma espécie de metáfora das reformas urbanas higienistas e elitistas que presidem as nossas metrópoles. A especulação manda e mortos “mais antigos” são desalojados para dar lugar aos novos, que podem pagar mais pelo espaço a ser ocupado. A lógica dos vivos (aliás, dos muito vivos) estende-se aos mortos, como não? Afinal, a morte é um negócio como outro qualquer e é preciso fazê-la render, administrando-a como se deve.
Com este, que é seu primeiro longa-metragem solo, Juliana reafirma a vocação já mostrada em Trabalhar Cansa, dueto com Marco Dutra, seu parceiro na produtora Filmes do Caixote. O diálogo com os gêneros (horror e fantástico, mas também o musical) não se esgota em mera curtição inconsequente, mas serve à reflexão social embutida na trama. Enfim, Sinfonia da Necrópole é um filme divertido, mas bastante consciente do seu viés crítico.
Outro programa interessante para hoje é Carta a um Pai, de Edgardo Cozarinsky. O diretor é muito conhecido na Argentina. Escreveu vários livros, entre eles Borges e o Cinema, em que retrata o relacionamento do grande escritor portenho com a sétima arte. Mas em Carta a um Pai, Cozarinsky nutre-se de suas próprias referências familiares. O filme não tem esse título por acaso. Ele toma a forma de uma missiva enviada a um pai morto há muitos anos e que continua sendo um mistério para o maduro Cozarinsky.
Ele corre atrás dos traços deixados pelo patriarca em Entre Rios, local de origem da família. O pai do diretor foi oficial da marinha argentina e, por força da profissão, viveu sempre meio distante da família. Por onde teria andado? Cozarinsky investiga sua memória pelos traços deixados, fotografias, pequenos presentes, escritos, diários, etc. É um belo trabalho de arqueologia de si mesmo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.