Uma feliz coincidência está promovendo um amplo reencontro entre a obra de duas das maiores figuras da história da arte inglesa, William Turner (1775-1851) e John Constable (1776-1837), que são, respectivamente, objeto de duas das maiores mostras em cartaz na capital do Reino Unido. Ao mesmo tempo rivais e em profunda sintonia, ambos são protagonistas da transformação e consolidação da paisagem em gênero maior da pintura neste país, o que torna ainda mais especial a possibilidade de ver essas duas produções em detalhes e quase simultaneamente.
As exposições são fruto de uma longa reflexão crítica e de caráter institucional. Tanto a Tate Britain como o Victoria & Albert Museum, que sediam as duas mostras e são responsáveis respectivamente pela guarda de amplos acervos desses artistas desde o século 19, procuraram iluminar novos aspectos desses produções, reunindo trabalhos há muito dispersos, estabelecendo novos recortes e promovendo diálogos com seletos empréstimos nacionais e internacionais.
No caso de Turner, primeira das exposições a ser inaugurada, em 10 de setembro na Tate Britain, a ênfase recai sobre sua produção tardia, altamente criticada em seu tempo como um desvio, como produto menor de um artista que caminhava progressivamente para a senilidade, e que hoje é festejada como fase áurea do mestre.
Nesse período, Turner parece se libertar definitivamente das amarras acadêmicas e se estabelece como uma espécie de precursor maior do Impressionismo, aliando uma radicalidade da pesquisa com o aprofundamento formal e temático de questões que o acompanhavam desde a juventude. Vale a pena abrir um parênteses para lembrar que a curadoria inglesa tem demonstrado grande interesse em investigar com maior profundidade as produções maduras dos artistas. Matisse e Rembrandt também tiveram mostras com esse perfil em 2014 em museus londrinos.
Já a exposição de Constable, que reúne mais de 150 pinturas, aquarelas e gravuras de sua autoria e de diversos outros autores, procura deslindar os nexos entre as paisagens aos quais o artista se dedicou com grande afinco e persistência e uma ampla trama de correspondências, visuais e compositivas. Além de pintor, ele era um colecionador dedicado, tendo reunido mais de 5 mil gravuras, e revelou-se um observador atento, absorvendo um leque amplo de referências, com ênfase em paisagistas holandeses do século 17.
Curiosamente, as duas exposições trazem no início autorretratos, jovens e confiantes. Mas as diferenças entre eles, tanto em termos pictóricos como pessoais, é folclórica. Turner é de origem pobre, Constable vinha de uma família de posses; Turner realiza sua primeira exposição na Academia Real aos 15 anos, Constable apenas perto dos 40. O primeiro nunca se casou, mesmo que se diga que teve filhos naturais, e viajava com frequência, passando todos os verões em lugares como a Suíça e Veneza, cujas paisagens pintava reiteradamente; o segundo nunca saiu da Inglaterra e era um pai de família e marido exemplar.
No entanto, para além das diferenças de estilo, personalidade e até temática, as exposições abrem uma possibilidade concreta de maior compreensão desses vínculos e divergências entre os dois mestres românticos, que tiveram a ousadia de dar à pintura de natureza uma potência física e simbólica inéditas. E que souberam, cada qual à sua maneira, dar à representação da natureza uma conotação particular, autoral, seja na forma altamente expressiva e apaixonada de Turner, seja no olhar terno, familiar, afetivo de Constable.
Como sintetiza Giulio Carlo Argan: “Em ambos os casos, de qualquer forma, a natureza não é concebida como o reflexo do criador na imagem do criado, e sim como o ambiente da vida: um ambiente que pode ser acolhedor ou hostil, mas com o qual se tece sempre uma relação ativa, não diversa do que liga o indivíduo à sociedade”.
No Brasil. O público de São Paulo terá oportunidade, no ano que vem, de acompanhar um pouco a saga da paisagem pela história da arte britânica, compreender sua importância e contemplar obras icônicas de mais de três séculos de produção, graças à exposição organizada pela Tate e provisoriamente intitulada de British Lanscape Paintings, a ser inaugurada em julho de 2015 na Pinacoteca do Estado.