Um dia do ano dedicado à saudade, a lembrar dos queridos que se foram, ir ao cemitério, levar flores, dar vazão à tristeza. Ou um dia para se embebedar de cerveja, vinho, tequila e aguardente, ir jantar no cemitério, de preferência com o prato sobre o jazigo, dançar até o amanhecer. No México, pelo menos, assim é o Dia dos Mortos. A tradição que intriga turistas pede a atenção dos espectadores brasileiros. Com produção de Guillermo del Toro, a animação Festa No Céu, já em cartaz, quer mostrar que a morte não precisa ser sempre triste.
Diretor de filmes como Pacific Rim, Hellboy, O Labirinto do Fauno e roteirista da saga O Hobbit, Del Toro apadrinha o desenho animado que traz uma história sobre costumes ancestrais, mas muito bem embalada com efeitos visuais primorosos, personagens dublados por famosos como os atores Channing Tatum, Zoe Saldana e Diego Luna, e uma trilha sonora digna de festival de música. No Brasil, os atores Thiago Lacerda e Marisa Orth estão entre os dubladores.
No filme, dois amigos, o romântico Manolo (Luna) e o valente Joaquim (Tatum), disputam o amor de uma mesma garota, Maria (Saldana). O que seria um delicado triângulo amoroso se torna um jogo perigoso quando, no Dia dos Mortos, ou melhor, no Día de los Muertos, espíritos e entidades vêm ao mundo dos vivos e decidem apostar nessa briga.
A parte musical ficou a cargo do premiado produtor argentino Gustavo Santaolalla, e é uma diversão à parte. Hits como Creep, do Radiohead, I Will Wait, de Mumford & Sons, e Do ya Think Im Sexy, de Rod Stewart, entre outros, ganharam versões em ritmo de mariachi (e, em sua maioria, traduzidas para o português).
A aventura decola quando Joaquim, morto em uma emboscada, é recebido no chamado inframundo. O mundo dos mortos, como reza a tradição mexicana, é uma grande festa de luzes brilhantes, enfeites, cores saturadas e churros à vontade, e é habitado por bem-humoradas calaveras, as caveiras mexicanas. Mas Joaquim não pode ficar, precisa atravessar esse terreno desconhecido e descobrir uma maneira de voltar ao mundo dos vivos, onde Maria o espera.
“Tínhamos o compromisso de fazer uma animação muito sofisticada visual e musicalmente, mas presa às raízes mexicanas, e não vamos nos desculpar ou justificar por isso”, comentou Del Toro, em conversa com a imprensa na Cidade do México. “Esse é um grande mérito. Seria um erro grave fazer algo genérico, sem uma história de verdade.”
Nascido em Guadalajara, Guillermo del Toro conta que, em sua família, a festa de 2 de novembro era a mais esperada do ano. “Para mim, o Natal nunca foi importante, mas o Día de los Muertos era sempre muito emocionante, havia caveiras e esqueletos de todos os tamanhos, em todos os lugares”, diz o diretor, que é colecionador de bonecos e monstros.
Hoje em dia, no entanto, Del Toro está radicado nos Estados Unidos e as visitas ao seu país são reservadas a eventos curtos. Ele se define em “exílio involuntário”, e é bombardeado de perguntas sobre quando voltará a filmar no México. “A segurança ainda é um tema muito complicado para mim”, respondeu ele.
O cineasta se refere ao episódio que o fez ir embora – em 1998, seu pai, Federico, foi sequestrado e ficou mais de dois meses em poder dos sequestradores. Foi libertado após pagamento de resgate e, desde então, os Del Toro se foram do México. “O sequestro mudou minha vida. Gostaria de poder vir mais vezes, mas esse assunto está pendente. Os homens que sequestraram meu pai ainda estão soltos.”
O temor do cineasta é que ele também seja alvo de violência. “Acho muito complicado passar 70 dias em um set de filmagem, com um cronograma que diga exatamente onde vou estar em cada dia. É muito arriscado.”
Quando diretores iniciantes o procuram, então, é a chance de se aproximar. Jorge Gutiérrez, um cineasta obcecado pela data festiva, apresentou seu curta-metragem e conquistou Del Toro. “Ouvi muitos nãos. Os estúdios tinham receio com o tema, diziam que era algo muito pesado”, diz.
Em Del Toro, Gutiérrez teve um grande professor. “Ele gosta de dizer que é como o Batman. Quando algo dá errado, eu grito. Ele vem e resolve, mas me dá cada bronca…” Para Del Toro, essa foi a chance de retribuir um favor que recebeu, quando ele começava, de outro grande cineasta, o espanhol Pedro Almodóvar, que foi seu produtor executivo de A Espinha do Diabo, em 2001.
Sem tristeza
Segundo a tradição dos povos indígenas mexicanos, uma pessoa quando morre vai ao inframundo. O historiador do Instituto de Investigações Antropológicas da Universidade Nacional Autônoma do México, Andrés Medina Hernández, explica que não há destinos diferentes para bons e maus. “A concepção cristã de céu e inferno não existe, não há castigo ou penitência”, defende o historiador. “O inframundo é um lugar lindo e cheio de riquezas.”
Atualmente, a crença ganhou traços europeus, mas mantém a essência de celebração. “Quem vem de fora estranha e há quem se ofenda por considerar falta de respeito fazer festa durante o luto, que deveria ser de resguardo”, explica Hernández. “Mas, para os pré-hispânicos, o Dia dos Mortos é muito aguardado, porque é um reencontro. Para eles, os mortos protegem os vivos. É o dia de recebê-los bem.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.