Há um revival de Claude Sautet na França. Começou com a retrospectiva realizada no Festival de Lyon, em outubro, quando foram apresentados dez filmes do diretor, oito restaurados por StudioCanal e dois por Pathé. Simultaneamente, chegou às livrarias francesas, também no começo de outubro, a edição definitiva do livro de entrevistas que Michel Boujut fez com Claude Sautet. Conversations Avec Claude Sautet surgiu há 20 anos, em 1994. Sautet morreu em 2000, Boujut em 2011.
A nova edição do Institut Lumière, de Lyon, na Coleção Actes du Sud, tem apresentação de Thiérry Frémaux, diretor artístico do Festival de Cannes, acrescida de um prefácio do ator Daniel Auteuil, que fez filmes importantes com Sautet. Há um posfácio de Bertrand Tavernier, que foi seu assessor de imprensa, antes de se tornar, ele próprio, diretor. E, como bônus, o livro contém o texto que Sautet escreveu sobre Le Jour se Lève, de Marcel Carné, que apareceu originalmente em Positif.
São 323 páginas, com 21 ilustrações e índex de filmes e demais obras e artistas citados. O importante é o verbo. Sautet fala. Sobre si mesmo, o mundo e o cinema. Roteirista antes de chegar a diretor, ele tem crédito por muitas das invenções do cultuado Les Yeux Sans Visage, de Georges Franju. Já assinava os próprios filmes quando escreveu La Vie de Chateu/A Farsa do Amor e da Guerra, que Jean-Paul Rappeneau dirigiu para a interpretação de Yves Montand e Catherine Deneuve e esgrime bem com as palavras nas conversas com o amigo Boujut. Eram amigos de frequentar-se, e se Sautet foi um diretor que deu um testemunho muito rico sobre as classes abastadas da França, Boujut não foi menos complexo como escritor, e não apenas de cinema. Jovem, ele desertou para não fazer a guerra, passando boa parte daquela fase da vida escondido no escurinho das salas. É autor de um livro reputadíssimo – Le Jour ou Gary Cooper Est Mort, O Dia em Que Gary Cooper Morreu. Sautet era um diretor que filmava os mesmos personagens, com os mesmos atores. Michel Piccoli, Yves Montand, Romy Schneider. A fotografia era sempre de Jean Boffety. A música, de Alain Sarde. E os personagens eram ele, suas múltiplas facetas. Boujut lembra-se do que lhe disse Alain Cavalier, falando de Coração no Inverno, de 1993 – “Claude se desnuda até ficar inteiramente nu e fragilizado perante nossos olhos. Poucos diretores teriam essa coragem.”
Para o cinéfilo brasileiro, que não tem a chance de estar em Paris neste Natal, quando o Champô, cinema de arte e ensaio do Quartier Latin, começa a mostrar as versões restauradas dos grandes filmes de Sautet – As Coisas da Vida, Sublime Renúncia, César e Rosalie, etc. -, sempre há a possibilidade de (re)ver/conhecer justamente Les Choses de la Vie em DVD (da Versátil).
Dividido entre dois amores – a mulher e a outra, Lea Massari e a sublime Romy Schneider -, Michel Piccoli sofre um acidente de carro e, enquanto rodopia no ar, entre as ferragens, antes de morrer, vê passar as imagens resumidas de toda uma vida. Sautet começou no cinema de ação. Classe Tous Risques/Contra Todos os Riscos, com Lino Ventura e Jean-Paul Belmondo, tem classe e, com Max et les Ferrailleurs/Sublime Renúncia, ele provou que, como Jean-Pierre Melville, poderia reinventar o policial francês. Mas foi sempre um intimista, atraído pelo retrato desses homens e mulheres que só não serão como a gente por terem mais dinheiro, por exemplo.
Vicente, Francisco, Paulo e os Outros. Vale lembrar o clássico de 1974. Se em As Coisas da Vida, de 1969, filma a solidão do homem diante da morte, cinco anos mais tarde, ao retratar o grupo, Sautet continuou mostrando homens que vacilam. Diante deles, ou comparadas a eles, as mulheres são fortes. Talvez se decepcionem com seus homens, mas não desertam. Romy Schneider, encerrada sua fase Sissi, deu a grande virada de sua carreira ao trabalhar com Luchino Visconti no episódio de Boccaccio 70 – O Trabalho. Consagrada como atriz dramática, brilhou em obras de inúmeros grandes diretores. A morte trágica, e prematura, somente consolidou o mito. Sautet deu-lhe alguns de seus mais belos papéis. Contracenando com Michel Piccoli ou Yves Montand, ela nunca é menos que doce. Seu sorriso é triste. É a mulher vivida e que compreende, aceita – o quê? A vida como ela é.
Bem escritos, irrepreensivelmente filmados, os filmes de Sautet emocionam pela justeza do tom e pelo detalhe. É um cineasta que se prende muito à minúcia na construção cênica. Nada define melhor Michel Serrault do que suas gravatas em Nelly e Monsieur Armand, de 1995, posterior à primeira edição do livro de Boujut. O mesmo gosto pelo detalhe manifesta-se nas conversas.
Sautet evoca momentos particulares de suas filmagens, disseca a contribuição de seus atores. Daniel Auteuil retribui e lembra como ele era caloroso no set, como adorava ouvir seus atores e com que prazer assimilava contribuições, quando sentia que elas iriam dar novo colorido a seus personagens (e enriquecer os relatos). O revival, mais que merecido, é necessário. Restabelece a grandeza de um autor um tanto, ou injustamente, esquecido. Se nenhuma distribuidora de cinema ou DVD trouxer a obra restaurada de Sautet para o Brasil, a Mostra tem quase um ano para fazer dele seu homenageado em 2015.