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Cartunista francês Jean Giraud, o Moebius, ainda causa controvérsia

Mais de dois anos após sua morte, o lendário cartunista francês Jean Giraud, o Moebius, ainda causa controvérsia. Ao editar este mês no Brasil uma de suas obras eróticas, o álbum Garras de Anjo, a editora Nemo deparou-se com uma inusitada barreira: a gráfica para a qual encaminhou o trabalho se recusava a imprimir o trabalho alegando que era pornográfico.

O editor da Nemo, Arnaud Vin, disse que a tentativa de censura que teria sofrido pela edição brasileira se trata de um “reflexo dos tempos moralistas” que vivemos. Garras de Anjo (Griffes dAnge), desenhada por Moebius e com texto do cineasta e roteirista chileno Alejandro Jodorowsky, foi feita em 1992 e publicada na França originalmente em 1994 pela editora Les Humanoïdes Associés. Não é uma história em quadrinhos stricto sensu, mas uma série de estudos gráficos, pranchas de uma página inteira, sobre o tema da exploração da sexualidade sem limites por uma mulher enlutada.

Os textos de Jodorowsky são estranhos, sulfurosos. Ele parece tratar às vezes de uma saga transexual, de um esforço de compreensão da sexualidade que vai além da noção binária. “Para me tornar uma verdadeira mulher, devia me desfazer até a raiz da menor parcela de vontade do homem que havia em mim”, diz a protagonista.

O desenho, meio new age, é a experiência mais marcadamente sexualizada de toda a obra de Moebius. Fetichismo, metafísica, sadomasoquismo, surrealismo, incesto, perversidade, Freud e Masoch: um pacote completo de delírios visuais. Insere-se numa tradição da qual fazem parte clássicos como História de O (romance erótico de Anne Desclos publicado em 1954 na França sob o pseudônimo Pauline Réage), que foi adaptada por Guido Crepax para os quadrinhos; ou Justine, do Marquês de Sade; ou ainda O Amante de Lady Chatterley; entre muitas outras.

Moebius é um dos desenhistas mais influentes da história. É possível encontrar ecos do seu design nas naves dos filmes de ficção dos últimos 30 anos, nas roupas do Cirque du Soleil ou nas roupas de cena do grupo Black Eyed Peas. Ele foi o responsável pelos storyboards de dois clássicos do cinema: O Caçador de Androides, de Ridley Scott, e Duna, de David Lynch.

Em 2007, durante a 31ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, foi exibido o filme Moebius Redux – A Life in Pictures, documentário sobre o autor que tinha música de Karl Bartos, músico do Kraftwerk – nada mais oportuno que um dos inventores da música eletrônica lado a lado com o inventor das viagens espaciais quadrinizadas.

Os quadrinhos eróticos viveram uma espécie de redescobrimento neste ano que termina. A própria editora Nemo publicou três álbuns da série Safadas, coletâneas de histórias com temas determinados que reúnem mestres dos gibis, como Georges Pichard, Jean Claude-Forest, Hélène Girard e Edmond Baudouin.

Os quadrinhos publicados na série Safadas, embora merecessem, não obtiveram grande repercussão no País entre os fãs. Falta de apetite, porque o volume de dezembro, o gibi Safadas Natal, com desenhistas como o argentino Horacio Altuna, é um primor de ironia e sarcasmo. Também é interessante a inversão de expectativas na história Estação Angústia, de Warns e Raives. Uma moça parece prestes a ser violentada numa estação de metrô deserta. Os rapazes no trem, alguns negros, outros com “cara de maloqueiro”, parecem ser os candidatos. Mas, no final, é o velhote executivo de pasta 007 quem tenta agarrá-la.

Há histórias em que os autores usam Papai Noel como uma metáfora sexual, outras nas quais o próprio Noel é o protagonista de uma aventura, e outras nas quais o espírito de Natal está envolvido em um ambiente erótico. Outros dois álbuns dessa série foram lançados este ano: Verão (publicado em janeiro) e Encontros (setembro). Destaque para a história O Ônibus das 11h32, de Edmond Baudouin, que exala uma certa atmosfera “gauguinesca” (relativa a Paul Gauguin), por assim dizer, um magnífico trabalho em preto e branco.

A questão da fronteira entre erotismo e pornografia sempre foi muito debatida no mundo dos comics. Milo Manara, Guido Crepax e Serpieri estão entre os mais refinados autores eróticos dos gibis e sempre foram vítimas da confusão de julgamento. Por outro lado, houve um momento, na história dos comics, em que os autores se refugiaram no gibi pornográfico por uma questão de sobrevivência e busca de espaço para sua expressão artística.

Um dos grandes autores dos gibis eróticos, o italiano Paolo Eleuteri Serpieri (autor de Druuna), disse ao jornal O Estado de S. Paulo, em 1999, que o preconceito contra o gênero ultrapassaria as épocas e que fugir do rótulo “pornográfico” era um falso dilema. O problema consiste, basicamente, em se dar uma conotação negativa ao termo, associando suas obras à violência.

Segundo Serpieri, a pornografia pode ser monótona, enjoativa, repetitiva, mas não é negativa em si. O erotismo, pondera, pode ser mistificador. “Costuma-se difundir que o erotismo é mais intrigante, estimulante, mas eu penso que é também hipócrita, porque finge esconder o que não quer fazer ver – e as pessoas costumam pensar que o que não se vê é mais elegante do que o que se vê”, diz.

O escritor Gonçalo Jr., debatendo em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo a obra de um dos gênios do quadrinho erótico, Guido Crepax, em 2005, disse que via a necessidade de separar a pornografia preconceituosa, machista (aquela que acaba por trazer sérias distorções para quem a consome com algum excesso em relação ao sexo oposto) das obras de erotismo refinado. “Isso (a pornografia) cria falsa expectativa, distorce no momento em que há contato entre os dois sexos, quase sempre com prejuízo para a mulher. O homem banaliza seu olhar quanto às atitudes femininas, espera ações e reações que só vê na pornografia”, considerou.

GARRAS DE ANJO
Autores: Moebius e Alejandro Jodorowsky
Editora: Nemo(72 págs.,R$ 49)

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