Variedades

Humor e tragédia dão as mãos em ‘O Comediante’

“Deve-se deixar a vaidade aos que não têm outra coisa para exibir”, registrou Honoré Balzac (1799-1850) em sua fragmentada obra A Mulher de Trinta Anos, de 1842. Mais contemporâneo, o psicanalista Augusto Cury também discorre sobre o excesso de amor-próprio em sua série literária O Vendedor de Sonhos (2008): “A vaidade é o caminho mais curto para o paraíso da satisfação, porém ela é, ao mesmo tempo, o solo onde a burrice melhor se desenvolve”.

Em tempos de idolatria ao efêmero e a busca incessante pelo aplauso virtual por intermédio da controversa onda de selfies, as frases dos autores explicam, cada qual a seu modo, a problemática de O Comediante, de Joseph Meyer, protagonizada por Ary Fontoura, que estreia nesta sexta, 16, no Teatro Raul Cortez.

“Somos muito carentes. Todos gostam de um agrado. E há pessoas que são muito carinhosas, mas não expressam a realidade em seus elogios”, conta o ator ao Estado, em um intervalo do ensaio. “Quando se é muito adulado e não se tem uma certa sobriedade, o entendimento verdadeiro das coisas pode ficar imbuído desses elogios e paralisar o progresso.”

Em cena, Ary Fontoura encarna o excêntrico Walter Delon, que há 20 anos vive somente para a sua vaidade. Ator de pouca verve artística, porém famoso e ovacionado por seus papéis canastrões, acaba vítima do próprio ofício quando se vê diante de uma cena que exige o talento de um grande artista. O resultado desastroso de sua atuação o leva ao desemprego e só lhe restam o orgulho e as manchetes que um dia estamparam seu nome. “Sou melhor que Carlitos”, diz na peça, comparando-se a Charlie Chaplin. A afirmação dimensiona perfeitamente o ego deste homem. “Delon parou no tempo. O único teatro que ele tem é a sua casa”, afirma o ator

Walter Delon, segundo o seu intérprete, foi picado por uma mosca azul e se deixou transportar ao mundo da representação, no qual vive como um personagem e refere-se a si sempre na terceira pessoa, enaltecendo sua perfeição. “Vi isso acontecer com muitos colegas de profissão e este personagem tem um pouquinho da loucura de cada um deles”, revela. “Não citarei nomes para evitar a indiscrição.”

Solitário em suas memórias, Walter tem sua plateia pessoal formada pela governanta Norma (Ângela Rebello), que o acompanha há 40 anos, e Eric (Gustavo Arthidorro), “um aproveitador sem opção”, descreve o ator, que de motorista particular ascendeu ao posto de agente do ator. Juntos, os funcionários querem lançar a biografia de Delon e convocam a jornalista Júlia (Carol Loback) para pôr no papel a trajetória do patrão e, assim, tirá-lo do ostracismo. “É tão absurdo e contaminante o universo deste personagem que todos ao seu redor acabam se deixando levar por este mundo fantasioso”, pontua Ângela. “Até mesmo minha personagem, que leva a profissão a sério, se vê embebida pelo glamour que Walter ostenta e acaba se perdendo durante a pesquisa para o livro”, diz Carol

O texto expõe a triste história do declínio de um homem que não admite a derrota. “Quando alguém escorrega numa casca de banana, o riso é geral. Mas a cena engraçada provoca uma tragédia. Quando essa pessoa levanta do chão, traz consigo a vergonha e o julgamento dos dedos apontados”, explica Ary. “O que acontece com Delon é isso. Ele escorrega na casca de banana, fica no riso da plateia e se recusa a levantar para enfrentar as dificuldades da vida.”
Do choro ao riso. Escrita também para provocar risos, a peça foi interrompida por lágrimas, ainda na fase de ensaios, com a morte de José Wilker (1944- 2014), diretor do espetáculo. Coube ao assistente Anderson Cunha a missão de organizar todas as marcações de cena desenhadas pelo mestre e conduzir o elenco para a abertura das cortinas na estreia da temporada carioca, em junho.
“Encarar a sala de ensaios nos primeiros dias foi difícil”, lembra Cunha. “Eu estava desesperado e olhei para o Ary Fontoura. Vi nele a tranquilidade e a vontade que precisava.”

Os fatos que antecederam a morte seguem vivos na mente dos atores e seu assistente. Era uma sexta e Wilker avisou que no dia seguinte não haveria ensaio, pois comemoraria o aniversário da filha Mariana, de 34 anos, e que retomariam o trabalho no domingo. “E a última cena? Não vamos ensaiar?”, perguntou Ary. “Não. Essa cena marcaremos no fim”, teria respondido o diretor. “Foi uma interrupção que ele se permitiu fazer. Seguimos suas orientações, mas ficamos órfãos do seu toque de genialidade no desfecho”, ressalta o ator.
A amizade entre Fontoura e Wilker nasceu em 1964, mas foi em 1986 que o primeiro se curvou ao segundo após uma briga. “Era o ensaio da peça Sábado, Domingo, Segunda. Eu atuando e ele como diretor”, explica Ary. “Eu queria a cena de um jeito e ele de outro. Bati o pé e brigamos. Se acha que não precisa ser dirigido e tem conhecimento para tocar seu trabalho sozinho, vá embora e pegue essa vaidade, encubra-se dela e fique em casa. No dia seguinte ensaiei como ele pediu. Meses depois, fui premiado por esta peça, mais especificamente por esta cena que ele desenhou”, acrescenta.

SERVIÇO
O COMEDIANTE
Teatro Raul Cortez. Rua Dr. Plínio Barreto, 285, Bela Vista, tel. 3254-1631. 6ª, 21h30; sáb., 21 h; dom., 19 h. R$ 70/R$ 80. Até 15/3.

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