Variedades

Milton faz show com apenas 2 violões

Milton não tinha nem 8 anos e já rezava por um violão. Qualquer violão. Um dia, a campainha tocou e ele foi atender. Estava sozinho em casa. Ao abrir a porta, tomou um susto com um carteiro segurando um pacote quase maior que ele. “Sua mãe está?”, quis saber o moço. “Não, só eu.” “Então assine aqui, meu filho.” Milton escreveu seu nome lentamente. “Já que você assinou, isso será seu também”, brincou o carteiro.

Para Milton, não era brincadeira. Assim que o moço dos Correios se foi, ele levou o pacote para o quarto. Era um violão. E o carteiro deveria ser a fada-madrinha. Milton passou a tirar as músicas que ouvia escondido, sem que a mãe soubesse que a encomenda enviada por uma tia havia sido sequestrada. No fundo, a mãe sabia, a tia sabia e até o carteiro deveria saber que a entrega tinha um único destinatário.

O violão entrou na vida de Milton assim, pela porta da frente. E só agora chega ao palco no formato mais íntimo possível, aquele próximo do momento da criação, da vida mais privada do artista, da sala de sua casa. Milton e dois violões, sem mais acompanhamentos, estarão neste sábado (17) e domingo (18) no palco do teatro J. Safra, em São Paulo.

O show se chama Tarde e o repertório traz apenas 12 canções, incluindo as duas de bis. Estarão na lista, ainda que com alguma chance de mudança, A Festa (de Milton), Sueño con Serpientes (Silvio Rodriguez), San Vicente (parceria com Fernando Brant) e Dois Irmãos (de Chico Buarque). Milton não vai tocar, mas estará ladeado pelos irmãos Wilson e Beto Lopes, que vão usar violões de sete cordas. Wilson também vai tocar viola caipira nas músicas O Cio da Terra, São Vicente e Ponta de Areia. Apesar de oficialmente não haver no currículo de Milton uma temporada só de voz e violões, ele já se apresentou assim. Sem compromisso, usou janelas da turnê Uma Travessia para fazer shows com os irmãos Lopes em pequenas e discretas salas.

Corta de volta para o violão que foi parar na casa de Milton. Havia algo incomodando a consciência do menino, que até então esperava o momento certo para confessar o crime à mãe. Até que se encheu de coragem e a procurou. “Mãe, fiz uma coisa errada.” “O que meu filho?” “Eu fiquei com o violão que mandaram para a senhora”. A mãe de Milton não disse nada. Fechou a cara e foi ao quarto ver o tal violão. Mas Milton já havia se apoderado da peça de tal forma que as primeiras músicas começaram a sair de suas mãos. “Minha mãe ficou doida quando ouviu o que eu já podia tocar.” E assim, ela sentiu que algo de diferente acontecia com o filho. “Você não fez nada de errado.”

O violão já era um amigo de infância quando as crianças começaram a entrar em sua casa. “E lá em casa era diferente. Minha mãe adorava quando as crianças dos vizinhos chegavam para fazer bagunça”, lembra. Elas também queriam ouvir Milton tocar. E a estratégia para prender a atenção dos menores era precisa. Ele primeiro criava uma história e depois, para ilustrá-la, inventava uma música. Isso tudo saindo de um moleque de 8 anos de idade.

Tempos depois, Milton saiu de Três Pontas rumo à cidade onde tudo parecia acontecer, São Paulo. E levou o violão.

Mas a São Paulo de meados dos anos 1960 tinha 70 violões para cada palco e Milton passou alguns dos piores dias de sua vida quando quis habitar um deles. Andava de bar em bar em busca de emprego há dias sem comer, quando sentiu um mal súbito e suas vistas se escureceram. Segurou o violão com firmeza para não cair. “Eu passava por tudo isso, mas nunca deixei minha família saber dessas histórias”, ele conta.

O violão era tudo o que tinha quando resolveu criar coragem e aceitar o convite de uma gaúcha ardida que não pedia, apenas mandava. Milton morava em uma pensão com outros amigos na zona sul de São Paulo quando Elis Regina o chamou para ele levar suas canções para que ela as ouvisse com carinho. Apesar de sua timidez avassaladora jogar contra sua vontade de ser simpático, ele sabia que uma fada não aparecia todos os anos. A última havia sido o carteiro de Três Pontas.

“Quem pode ir comigo na casa da Elis Regina?”, perguntou Milton aos amigos de pensão, em busca mais de um segurança do que de uma companhia. Ninguém quis – e mais uma vez lá se foram apenas Milton Nascimento e seu violão.

E então chegaram os dois. Elis percebeu estar diante de um porcelana fina, que poderia lhe dar as maiores belezas se não se arrebentasse antes. Ela o recebeu com carinho e decidiu tratá-lo como tal. Acomodou-o na sala e pediu carinhosamente que tocasse suas canções. Milton tocou uma, duas, três, e nada. Quatro, cinco, seis. Nada. Calcula ter tocado mais de dez. “Talvez umas 20”, disse. Elis o olhava séria, sem grandes reações, até que Milton resolveu cantar uma que não estava terminada, Canção do Sal. E foi por essa que Elis se apaixonou.

Nos braços de Elis, Milton e seu violão cresceram. Saíram das ruas e foram parar nos palcos do programa O Fino da Bossa por ordens expressas da madrinha aos diretores da TV Record, que se recusavam a receber o garoto tímido de Três Pontas. A partir dali, Milton e seu violão viveriam por Elis um triângulo amoroso. Fizeram um trato: Milton criaria as músicas para a amada e o violão as levaria a seus ouvidos. E todas, mesmo as que não citassem a palavra amor, teriam Elis Regina como inspiração. Mesmo depois que Elis partisse. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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