No ano passado, Leviatã, do russo Andrei Zvyagintsev, foi o último filme a ser chamado para integrar a competição de Cannes. O maior festival do mundo já estava começando quando foi feito o anúncio. No final, levou o prêmio de roteiro, para Zvyagintsev. Se o diretor ficou decepcionado, disfarçou bem. A temporada de prêmios começou depois. Prêmio da crítica na Mostra de São Paulo, Globo de Ouro de filme estrangeiro e um dos cinco indicados para o Oscar da categoria. O melhor de todos? Há controvérsia.
Timbuktu, de Abderrahmane Sissako,
também concorria em Cannes. É o melhor dos cinco indicados para melhor filme, melhor que o polonês Ida, que o argentino Relatos Selvagens, mas foi esquecido pelo júri presidido pela cineasta Jane Campion, talvez até por motivos que não têm nada a ver com arte. O filme é crítico ao avanço do Islã e do júri participava a atriz iraniana Leila Hatami, de A Separação. Ela provavelmente teria ficado em apuros com a vitória de Timbuktu.
Mas Leviatã, além de favorito no Oscar, é muito bom. E Zvyagintsev é diplomático. Um autor que mede as palavras e não confirma, em suas declarações, a pesada crítica que o filme faz à Rússia pós-comunista. Seu filme foi feito para contestar o poder? “Você acha? Por quê?” Ele narra uma história de corrupção e violência que se passa em boa parte em gabinetes de burocratas que são sempre enquadrados com o retrato do czar Vladimir Putin ao fundo. “Ah, isso? Mas se a história é contemporânea e ele é o governante, o retrato de quem você queria que eu colocasse? Ainda não mostrei o filme para ele, mas duvido que Putin pense que o estou confrontando. Além do que, seria absurdo.”
No limite, é possível que Leviatã seja o maior ataque ao regime já feito na Rússia. A questão é – qual regime? Numa cena, os personagens praticam tiro ao alvo em retratos de representantes do antigo regime. O filme conta a história de um homem comum que possui a casa certa no lugar errado. Ele gosta dessa casa, mas ocorre que os burocratas encastelados no poder têm um plano urbanístico para essa região. Ele resolve confrontá-los. Sua vida, o casamento, tudo vai para o ralo. “A burocracia é um inferno em qualquer país. Até pelos meus encontros com jornalistas aqui em Cannes, posso dizer que todos me relataram casos semelhantes em seus países. Para mim, a parábola é universal.” Tão universal que Zvyagintsev revela – “Baseio-me num caso ocorrido nos EUA.”
Mesmo tendo cuidado com as palavras, ele é crítico – “Já tenho 50 anos e nunca votei na vida. Viver na Rússia é como estar num campo minado. É difícil, senão impossível estabelecer um plano de vida, de carreira. Há uma disputa absurda pelo poder, e nesse processo o artista raramente é bem-visto. Os poderosos quem ser adulados e desprezam os que o fazem. Os críticos são inimigos e tratados como tal.” O repórter cita o caso de outro cineasta muito crítico em relação à Rússia contemporânea, Sergei Loznitsa. “Se você já conversou com Sergei, sabe como é a vida na Rússia.” O filme conta a história de Nikolai, ou Kolya, interpretado por Aleksei Serebryakov. Sua família viveu sempre nessa casa com vista para o mar que, agora, o prefeito quer demolir para construir um empreendimento imobiliário.
Aleksei torna-se um empecilho. Luta contra um sistema monstruoso, que vai usar contra ele suas forças, para reduzi-lo a frangalhos. É a pergunta que não quer calar – quem é ou o que é o Leviatã do título? É uma criatura mitológica de grandes proporções, que frequenta o imaginário do Ocidente desde que os navegantes europeus da Idade Média se lançaram ao mar. Antes disso, no Velho Testamento, já existem referências a Leviatã no Livro de Jó. E no filme? Existem restos de um monstro marítimo na praia, mas o Leviatã no título do filme de Zvyagintsev será o sistema que Nikolai enfrenta? E será o próprio Nikolai a moderna encarnação de Jó?
“Você não espera honestamente que eu lhe responda. Essa é a sua parte, e a parte do espectador. Estou compondo uma parábola que cabe ao outro decifrar. Se eu fornecer as respostas, as perguntas perdem o sentido, do ponto de vista dramatúrgico.” Estudante no interior da Sibéria, Zvyagintsev sonhava ser ator. Em Moscou, desde 1986, tornou-se diretor. Fez O Retorno, que ganhou o Leão de Ouro em Veneza, Banishment e Elena. Zvyagintsev já foi comparado a Andrei Tarkovski, talvez pela forma como esculpe o tempo. Ele acha que a referência está mais nos olhos de quem vê. Zvyagintsev filmou Leviatã no Mar de Barents, no norte da Rússia. “É espetacular, não? Precisava dessa paisagem para realçar o drama humano.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.