Em maio passado, durante a coletiva de seu longa Timbuktu – que participava da competição – e depois em todas as entrevistas que deu na Croisette, o diretor da Mauritânia Abderrahmane Sissako lamentou que o mundo estivesse se tornando tão indiferente ao terrorismo. Sissako chegou a chorar – de emoção?
Indignação? – durante a coletiva. Talvez ele esteja um pouco mais confortado. O ataque ao Charlie Hebdo mobilizou multidões na França e no mundo. Mesmo os que, como o papa Francisco, pediram respeito pelas crenças dos muçulmanos, emitiram veementes condenações. Indiferença, jamais.
Mas não houve nada dessa comoção coletiva quando ocorreu a história real que motivou Sissako a realizar seu belo filme – o melhor de quantos estão na disputa pelo Oscar de filme estrangeiro. Com exceção de Tangerines, da Estônia, estão todos nos cinemas brasileiros. Timbuktu veio se somar ao russo Leviatã, favorito na corrida do Oscar, ao polonês Ida e ao argentino Relatos Selvagens. “O gatilho desse filme foi uma história ocorrida no ano passado (em 2013) no Mali. Um casal foi morto a pedradas pelos islamitas que ocupavam sua aldeia. O crime – tinham um filho e não eram casados. Viviam em pecado. Esperei uma reação que não veio. O caso se esgotou em pequenas notícias de jornal e TV. Foi o que me moveu a fazer Timbuktu, o que recebi como uma manifestação de indiferença do mundo ao terrorismo.”
No final, mesmo sendo um dos favoritos à Palma de Ouro, o filme de Sissako foi esquecido pelo júri presidido pela cineasta neozelandesa Jane Campion. Nisso ficou em boa companhia, porque O Segredo das Águas, da japonesa Naomi Kawase, que também concorria em Cannes, foi outro a nada ganhar. No caso de Timbuktu, o júri talvez tenha sido prudente, e em questões que não têm nada a ver com estética. O júri era integrado pela atriz iraniana Leila Hatami, de A Separação, e ela talvez tivesse problemas se ligando a uma decisão que favorecesse Sissako e seu (grande) filme.
Sissako e sua produtora francesa – Sylvie Pialat, a viúva de Maurice Pialat – chegaram a pensar em fazer um documentário, em vez de uma ficção. “O que nos fez decidir foi uma questão prática. Timbuktu ainda estava ocupada. Filmar no Mali, mesmo se tentássemos fazê-lo de forma clandestina, seria suicídio. E fazer um documentário em outro país afetaria a credibilidade. Demoramos mais para encontrar o país do que para escrever o roteiro. No final, filmamos na Mauritânia.” E é sob a bandeira da Mauritânia, onde Sissako nasceu, que o filme dele está concorrendo ao Oscar. Oficialmente, o país situado no noroeste da África chama-se República Islâmica da Mauritânia, e isso torna mais contundente a crítica do diretor e os riscos que sua produtora e ele assumiram. Isso pode contabilizar pontos no Oscar.
Seu medo, Sissako revelou, era não estar à altura do tema. “Não me sinto à vontade em sets de filmagem. Comandava um grupo de 60 pessoas que seguiam minhas ordens e eu com frequência queria parar tudo. E se eu estivesse estetizando o relato? A humanidade da história exigia um tratamento direto, sem artifício. Espero tê-lo logrado.” Com certeza, logrou e a justeza desse olhar vem por meio de uma hábil mistura de humor e pesar. “A vida é assim mesmo. Nunca é uma coisa só.” A questão da humanidade era essencial para o diretor, em sua abordagem. “Essa história mexeu comigo, me produziu indignação, mas eu não queria transformar os jihadistas em monstros. A natureza humana é muito complexa, qualquer pessoa carrega o bem e o mal. O jihadista é como a gente, mesmo que sua vida tenha mudado dramaticamente. Um pessoa que abusa tanto das outras tem de ter dúvidas. Me recuso a pensar que não. Paradise Now (de Hany Abu-Assad) deu forma a essas dúvidas. Por isso, prefiro acreditar que mesmo o jihadista, no horror do seu fanatismo, não pode ter perdido a dimensão humana. É no que aposto, senão a indiferença de um lado e o fanatismo de outro vão colidir e o horror não terminará nunca.”
Embora nascido na Mauritânia, Sissako viveu sua infância e juventude no Mali. Aos 18 anos, após um breve retorno ao país, partiu para a (ainda) União Soviética. Testemunhou a derrocada do comunismo e, aos 30 anos, estabeleceu-se na França. Sua grande influência, ele assume, é o russo Dziga-Vertov. “Tudo em que acredito, na vida como na arte, me leva ao cinema verdade”, acrescenta o diretor. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.