Houve um tempo em que o nome de Manoel de Oliveira era praticamente desconhecido no Brasil. Foi a Mostra de Cinema de São Paulo e seu criador, Leon Cakoff, que nos apresentaram a Manoel, que então se incorporou ao repertório cinefílico brasileiro.
A partir da retrospectiva que Leon promoveu, Oliveira tornou-se um nome corrente no Brasil, pelo menos entre aqueles que apreciam o cinema dito de arte, ou seja, diferente do mainstream comercial. Ele, em pessoa, passou a vir a quase todas as edições da Mostra, apresentava seus novos filmes, dava entrevistas e tornava-se familiar a todos nós.
Numa dessas visitas, reuniu-se a outro veterano do cinema, o fotógrafo Gabriel Figueroa (que trabalhou com John Ford e Luis Buñuel) e ambos trocaram ideias sobre o cinema. Nessa conversa de veteranos, havia quase dois séculos de experiências reunidas.
A verdade é que, também na Europa, o cinema de Oliveira começou a ser conhecido e, imediatamente, reconhecido, em especial na França, um tanto tardiamente. Meio marginal, no melhor sentido do termo, Oliveira era estimado apenas por gente que sabia ver filmes, como o crítico francês Serge Daney, que promovia sessões de suas obras em Paris.
A partir desse reconhecimento tardio, Oliveira aos poucos foi ganhando a aura de grande mestre e passou a frequentar os maiores festivais europeus. Atores de fama faziam questão de trabalhar em seus filmes. Catherine Deneuve, Marcello Mastroianni, John Malkovich, Irene Papas e outras estrelas do circuito internacional vieram reunir-se à trupe habitual do diretor, a atriz Leonor Silveira, o ator Luiz Miguel Cintra e, mais recentemente, seu neto, Ricardo Trepa.
Deve ser dito que o próprio Oliveira começou tarde. Filho de uma família burguesa do Porto, nasceu em 1908, frequentou escola de jesuítas e sua primeira paixão foi o esporte, não o cinema. Nadava, praticou atletismo e foi piloto de carros de corrida. Tinha também interesse pelo teatro e frequentou escola de atores. Trabalhou como ator no filme A Canção de Lisboa (1933).
Dois anos antes havia realizado seu primeiro filme, o curta-metragem em honra da sua cidade – Rio Douro, Faina Fluvial (1931), poético documentário sobre o rio e seu entorno humano. Só muito mais tarde se arriscaria na ficção com Aniki-Bobó (1942), falando da infância desvalida na Ribeira do Porto. Muitos veem, nesse filme, uma espécie de precursor da estética neorrealista que seria estabelecida pelos italianos, Roberto Rossellini à frente, no encerramento da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
O fato é que, até então, Oliveira era apenas um cineasta bissexto. Tanto assim que 14 anos se passaram até que realizasse seu segundo longa, O Pintor e a Cidade (1956). Nada faria prever o ritmo frenético que imprimiu à carreira em sua longa maturidade, quando chegou a rodar um filme por ano, e às vezes até mais de um.
Alguns dos filmes mais famosos de Manoel vieram de adaptações de obras literárias, como Amor de Perdição (1979), de Camilo Castelo Branco, e Vale Abraão (1993), título com o qual rebatizou o clássico de Gustave Flaubert sobre o adultério, Madame Bovary. São obras que ilustram à perfeição o estilo maduro do autor. Lentas em seu andamento reflexivo, literárias (no melhor sentido do termo), muito rigorosas pelo apuro formal, exigem paciência do espectador e o recompensam na mesma proporção. Há que reconhecer que, em especial nessa fase, é um artista difícil. Não entrega tudo mastigado ao público.
Manoel, como raros artistas dessa atividade industrial que é o cinema, criou segundo as suas convicções e padrões estéticos, dando muito pouca satisfação a exigências de mercado. A partir de certa época em sua carreira sempre teve quem lhe financiasse os projetos, sem palpitar na parte estética, ou exigir que fizesse concessões a uma maior comunicação com o público. Paulo Branco foi esse produtor ideal durante muitos anos, até que brigassem.
Interessava a Manoel recriar a densidade dos textos literários em linguagem audiovisual. Assim como refletir filosoficamente, a partir do cinema, sobre temas como a linguagem, o tempo, a civilização, a cultura, e, em particular, a civilização portuguesa. Esta que, através de Luis de Camões, expressou o poderio de um império e depois teve de refletir sobre a decadência. São temas presentes em alguns dos seus grandes filmes como Non, a Vã Glória de Mandar (1990) ou O Quinto Império (2004).
Mais recentemente, meditou sobre o papel um tanto deslocado de Portugal no contexto da Europa unificada em Um Filme Falado (2003). A ideia, engenhosa, elege como protagonista a professora de História (Leonor Silveira), que leva a folha em viagem para que a menina conheça, in loco, os pontos maiores da civilização europeia. No navio, mãe e filha, convivem com passageiros de outras nacionalidades e idiomas. Todos se entendem entre si, através das línguas da cultura, como o inglês e o francês. Mas o idioma português fica de lado, como a mostrar a posição secundária que Portugal passou a ter no contexto europeu.
No entanto, é esse idioma, falado por mais de 200 milhões de pessoas, mas pouco conhecido fora das nações que o praticam, que Manoel de Oliveira faz questão de enaltecer num filme dedicado a um dos seus maiores cultores, o padre Antonio Vieira, com Lima Duarte interpretando o jesuíta em sua idade avançada. Palavra e Utopia (2000) é uma belíssima reflexão sobre o idioma culto como suporte do pensamento e do humanismo.
Esses filmes citados mostram Manoel a exercer essa prática do cinema como profundidade e rigor. Há, porém, outro aspecto que veio a ser cultivado a partir de certo ponto de sua trajetória – a leveza. É difícil conceber essa virtude apontada como essencial por Italo Calvino (em suas Seis Propostas para o Próximo Milênio) no cinema de Manoel, preconceituosamente definido como pesado. Mas basta ver filmes como Vou para Casa (2001) e Bela para Sempre (2006), para se convencer de que o diretor português era também praticante da arte da leveza. Curiosamente, esses dois filmes têm o ator francês Michel Piccoli como protagonista.
Em Bela para Sempre, Piccoli interpreta, já velho, o mesmo personagem que vivera em Bela da Tarde (1966), de Luis Buñuel. O filme é esse reencontro 40 anos depois do cliente com a prostituta vespertina vivida por Catherine Deneuve no clássico do mestre surrealista. Deneuve não quis repetir o papel e foi substituída por Bulle Ogier. O filme é breve, ágil e quase se resume a um jantar a sós entre os dois personagens.
Como sempre, em especial nesses últimos trabalhos de Manoel, a simplicidade liga-se a um sentido de mistério muito especial. É assim com Singularidades de uma Rapariga Loira (2009) e O Estranho Caso de Angélica (2010). No primeiro caso, a estranheza de um relacionamento amoroso que se destrói por uma talvez inexplicável cobiça. No segundo, algo ainda mais bizarro, um fotógrafo convidado a fotografar uma moça morta e que se apaixona por uma imagem.
Em O Gebo e a Sombra, com diálogos em francês, Manoel adapta a peça do seu conterrâneo Raul Brandão. Michael Lonsdale faz o Gebo, velho contador que precisa ainda trabalhar para a sobrevivência da família. Há um filho distante (Ricardo Trêpa) do qual se fala mas que está em viagem. O tema é dinheiro. E honestidade. O Gebo é um modelo de honradez. Por paradoxo, será obrigado a mentir por generosidade, para que sua mulher não sucumba à decepção. É um belo tema moral, filmado em ambiente único, com atores magníficos dizendo um texto cheio de nuances. Um cinema depurado, simples, leve, sem jamais deixar de ser profundo.
Manoel fez um cinema único, de pensamento, reflexivo e preocupado com os mistérios e os desvãos da alma humana. Não por acaso, sentiu-se atraído pela prosa límpida, irônica e reveladora de Machado de Assis e sua Igreja do Diabo. Quem leu o conto, sabe que é do entrelaçamento entre bem e mal que se tece o jogo da existência humana, mesmo na projeção religiosa da luta entre Deus e o diabo. Tal tema não poderia deixar de seduzir o velho cineasta.