Pouco mais de 70 anos depois, iniciou-se ontem o talvez último grande julgamento sobre Auschwitz. Oskar Groening, hoje com 93 anos, recebeu o apelido de “contador de Auschwitz”. Seu trabalho: organizar e contabilizar as peças deixadas para trás pelas pessoas mortas no campo. “Em termos morais, minhas ações me fazem culpado”, disse o alemão perante a corte.
Em termos morais, o novo romance que o escritor paranaense Miguel Sanches Neto lança agora pela Intrínseca, A Segunda Pátria, é assustador. Com a elegância conquistada em 15 anos de carreira na literatura, o autor aprofunda seu gosto pelo romance histórico ao imaginar um Brasil em que, em fins dos anos 1930, Getúlio Vargas deixou de lado as amarras morais e autorizou oficialmente o nazismo no Brasil – que foi, de fato, a maior colônia nazista fora da Alemanha.
O romance se passa em Blumenau, Santa Catarina, e passeia por Porto Alegre e também pelo Rio – mas é de fato na região Sul que uma série de barbáries toma lugar.
O livro é a representação de um salto no abismo rumo ao passado – a segregação racial, mais do que a religiosa, é o que pega os nazistas brasileiros projetados por Sanches Neto – e o doloroso é perceber que isso, afinal, não está tão longe de nós tampouco hoje em dia.
“A ideia de um Brasil nazificado nos coloca diante de horrores dos quais achamos que estivemos e continuamos distantes”, explica o escritor ao Estado. “Tentei intuir como seria este Brasil à luz de uma ideologia ariana. Com certeza, este país teria como principais vítimas as populações de origem africana e os índios” – no romance, Adolpho Ventura é um engenheiro, criado em família alemã já contaminada pelo verme inicial do nazismo, e negro. A tensão resultante desse dilema é o fio pelo qual o narrador caminha.
Porque esse dilema é uma imagem projetada do Brasil – como um país com maioria negra, parda ou indígena pode encampar ideais eugenistas e de fato colocá-los em prática é algo que parece escapar à compreensão de todos. “Mas, se olharmos para o maior grupo do sistema carcerário do país, se olharmos para a frieza de certos assassinatos, para as crianças em estado de rua, enfim para os que vivem à margem, encontraremos sempre os negros”, aponta Sanches Neto. “Ou seja, o que pode parecer delírio no romance tem uma triste continuidade social ainda hoje, sem o radicalismo da solução nazista.”
O que está em jogo no romance histórico é exatamente a sua conexão firme com o presente. “A Segunda Pátria foi o meu livro mais difícil porque tive que colocar em cena um referencial histórico pouco comum entre nós, pois gostamos de nos ver como um país sem preconceitos raciais”, diz o autor, praticamente um veterano no gênero – Um Amor Anarquista, de 2005, romanceia a criação da Colônia Cecília no Paraná, tentativa de implantação do anarquismo em fins do século 19. E A Máquina de Madeira, de 2012, reflete sobre a fundação do País ao recontar a história do padre paraibano Francisco João de Azevedo, que teria inventado a máquina de escrever.
“Neste livro, há um grau de alteridade maior do que nos outros romances históricos que escrevi”, analisa o autor. “O figurino ficcional de alguns personagens é bem mais negativo. O nazismo no Brasil se tornou um grande tabu. Houve um silenciamento sobre certos entusiasmos naquele período. Digamos que este meu livro trabalha numa área de maior risco, embora toda obra de ficção seja sempre arriscada, pois dilata pela imaginação as experiências vividas.”
A outra personagem do romance é Hertha, “a mais bela alemã do Brasil”, mulher com fortes inclinações sensuais que, de início, simpatizou-se com as aspirações do nazismo, e que, durante seu sofrido percurso no livro, revê a questão à luz de acontecimentos pessoais bastante marcantes.
“Ao escritor, interessa colocar em cena os sofrimentos humanos, as dores, as decisões difíceis, sem defender nada”, argumenta Sanches Neto. “O que supera o clima de horror instaurado pelo sistema é o sacrifício dos indivíduos.”
E, quando ele fala em clima de horror, não há dúvidas. Em uma das cenas mais comoventes do livro, os pais de Adolpho Ventura, em fuga do Sul para o Rio, onde o regime não havia ganhado contornos tão reais, são fechados em uma caixa de madeira que é despachada em um trem. Com o neto bebê. “Quando o trem começou a se mover”, diz o narrador, “os dois choraram, aliviados. Estavam enfim deixando o país dos nazistas. Iam em busca de outra pátria. Passariam calor, teriam pouco ar, cãibra por não poderem se levantar nem se deitar direito, iriam embebedando o neto, o garrafão de vinho batizado estava ali, e sentindo o cheiro dos próprios excrementos, mas tudo seria apenas por algum tempo”.
Porque justamente o caráter mais impressionante do livro é o clima de horror que ele instaura, um clima que aparentemente sobrevive um metro abaixo da superfície em todo momento histórico do Brasil, inevitável dada a constituição do País. “O nazismo foi uma semente com um alto índice de germinação em nosso solo, mas que não chegou a gerar as plantas e os frutos”, diz Sanches Neto, que dedicou três anos ao projeto proposto pela editora Intrínseca com uma extensa pesquisa.
“Apenas simulei alguns possíveis desta lavoura horrenda.”
O caráter extremamente militar do nazismo também pega o leitor pelo pescoço – em face de manifestações recentes de brasileiros livres clamando por um golpe militar, a reflexão sobre ordem proposta pelo autor é muito pertinente. “A defesa da ordem é sedutora, e por isso extremamente perigosa. No período de namoro com o nazismo como projeto de nação, houve um espaço para a reafirmação de valores marciais. A cada momento que as forças do povo se manifestam, esta ideologia é convocada como solução saneadora. Foi o que aconteceu nos anos 60, está sendo assim hoje. Mas agora esta erupção parece mais uma manifestação espasmódica do que movimento sedimentado”, reflete. “Assim, pelo menos, eu quero crer.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.