Nos 450 anos do Rio de Janeiro, o Instituto Moreira Salles (IMS) lança simultaneamente dois livros com vistas panorâmicas da cidade, ambos produzidos em parceria com a editora alemã Seidl, primeiro trabalho em conjunto com a instituição brasileira. Os dois têm o mesmo tamanho e um luxuoso projeto gráfico em comum, mas o primeiro, dedicado a Marc Ferrez, principal fotógrafo do Rio no século 19, a despeito de registrar as transformações da então capital política do País, expurga a miséria do campo visual.
Já o segundo livro, do fotógrafo canadense Robert Polidori, não só inclui a parte pobre da cidade como escancara as portas das comunidades dos morros cariocas. Polidori, aos 64 anos, é reconhecido como um fotógrafo cuja habilidade de mesclar passado e presente de um lugar numa mesma imagem não encontra rivais.
Há cinco anos, ele começou a registrar a cidade do alto, como fazia Marc Ferrez no século 19, subindo os morros cariocas com sua pesada câmera Brandon – na época, o máximo em matéria de tecnologia, capaz de registrar panorâmicas em grande formato.
Polidori também usa equipamento pesado, o que inviabilizou o projeto inicial de fotografar o Rio a bordo de um helicóptero. “Até tentei, mas a instabilidade é grande e eu queria me aproximar mais”, diz ele, que foi desaconselhado por amigos a usar a aeronave por causa dos traficantes, que não pensam duas vezes em atirar para o alto.
Se o céu é um perigo, a terra não fica atrás. Ao subir o morro da Rocinha, ele descobriu que a mira dos bandidos é ainda melhor de perto. “Tentei fotografar do telhado de uma escola, mas o ângulo não era favorável”, conta.
O diretor da instituição, vendo o esforço de Polidori, às voltas com sua grande câmera montada num tripé, apresentou-o a um morador que, finalmente, arranjou um telhado melhor para captar imagens frontais. O resultado é deslumbrante. Não se parece em nada com as fotos que identificam o canadense, embora conservem o detalhe meticuloso de todas as suas criações.
Duas séries estão entre as mais conhecidas de Polidori: a de Chernobyl, que documenta escolas, hospitais e usinas abandonadas após o desastre na usina atômica ucraniana, em 1986, e a de New Orleans, registro da tragédia de sua inundação em 2006, que deixou 80% da cidade sob as águas na passagem do furacão Katrina. Essa última série é tão impressionante que o escritor John Updike escreveu, na época, que Polidori entrava no interior caótico das casas vazias “com a mesma devoção que o levou a explorar os espaços radioativos de Chernobyl”.
Embora sejam registros que podem ser classificados de fotojornalismo, Polidori, que já fotografou o globo terrestre inteiro, diz que sua meta não é a de alcançar a objetividade dos jornalistas, mesmo sendo um dos mais requisitados profissionais da revista The New Yorker. “Acho que me considero mais um psicólogo amador, pois me interesso pelo efeitos da passagem do tempo no habitat”. A casa, como a vê o fotógrafo, não é apenas uma construção, mas “testemunha de uma necessidade individual”.
Cada casa das favelas cariocas, observa, é um exemplo de individuação no caótico, uma tentativa de estabelecer uma ordem. A fascinação do fotógrafo em captar os vestígios do tempo é tanta que ele acompanhou a reforma do palácio de Versalhes, na França, por vários anos, registrando passo a passou a renovação do castelo.
“Alguns imaginam que eu fotografe destroços e casas vandalizadas porque gosto da decadência, mas digo que o que me interessa é, antes, a restauração dos traços biográficos deixados pelas pessoas que moraram naquele lugar”, justifica. Sejam edifícios bombardeados em Beirute ou casas vandalizadas em Nova York por gangues de rebeldes, elas acabam revelando mais sobre seus moradores do que um encontro cara a cara, garante.
Isso explica porque o livro sobre o Rio tem poucos personagens e mais a arquitetura caótica das comunidades pobres, que transformou a paisagem idílica de Marc Ferrez numa sucessão de assentamentos sem projeto. Bem, a outra capital, Brasília, que Polidori imaginava, quando criança, ser uma cidade de discos voadores habitada por marcianos, foi rigorosamente projetada e também virou um caos.
“Brasília tem o rigor formal da Bauhaus, mas é extremamente mal construída”, critica. Inquieto, ele está sempre em busca de lugares que, mesmo destruídos, possam fornecer dados sobre a transformação da sociedade. Ele conheceu o Rio antes das obras que pretendem renovar o porto e a área central da cidade. Suas fotos mais tocantes no livro, não por acaso, são as fachadas dos velhos estabelecimentos da Lapa com as portas fechadas nas páginas finais.
Pictórico? Nem um pouco. Polidori diz que não faz pintura com fotografia. É, como já o definiram, um fotógrafo de ruínas em busca do tempo perdido. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.