Orson Welles faria 100 anos nesta quarta-feira, 6. Morreu com 70 anos, em 1985. E o que mais dizer desse artista, e dessa obra, sobre os quais já se gastou uma floresta de papel e rios de tinta? Simplesmente que é inesgotável. Isto é, há sempre algo mais a ser dito, como acontece com os clássicos. Não por acaso, aquele que é considerado o grande especialista contemporâneo em Welles, o crítico norte-americano Jonathan Rosenbaum, intitula seu livro fundamental de Discovering Welles. Descobrindo Welles. Por que o gerúndio?
“Porque a compreensão de sua obra é um processo, jamais terminado”, disse Rosenbaum durante sua visita ao Brasil, no mês passado, por ocasião do É Tudo Verdade, festival de documentários cujo nome adota o título do filme inacabado de Welles, rodado no Brasil.
Esse fato nos fornece um atalho para lembrar que a relação de Welles com o Brasil foi e continua a ser muito importante em sua biografia. Foi para cá que Welles, já uma celebridade, veio filmar uma obra de encomenda, parte da política da boa vizinhança de Roosevelt, em plena 2.ª Guerra Mundial.
Era 1942, e o filme se chamaria Its All True – É Tudo Verdade. Incluiria um episódio no México, chamado My Friend Bonito. Welles, ocupado com a finalização do seu segundo longa, Soberba, passou essa tarefa ao cineasta Norman Foster. O próprio Welles veio ao Brasil filmar o carnaval, e também uma história de jangadeiros que havia sido capa da revista Time.
Esses quatro homens viajaram numa jangada de Fortaleza ao Rio de Janeiro para reivindicar direitos trabalhistas ao presidente Getúlio Vargas. A navegação ficou famosa e Welles quis reproduzi-la no filme. Na reconstituição, uma onda virou a embarcação e o líder dos jangadeiros afogou-se. Mesmo assim, e enfrentando a oposição do estúdio RKO, Welles continuou a filmagem, agora como homenagem a Jacaré. O filme foi engavetado e redescoberto apenas em 1985 por um diretor da Paramount, Fred Chandler.
Por fim, em 1993, Bill Krohn e Myron Meisel lançaram o documentário É Tudo Verdade – Baseado em Um Filme Inacabado de Orson Welles. O material referente à saga dos jangadeiros é esplêndido, filmado por Welles e fotografado por George Fanto. Poucas vezes o Brasil e sua gente foram registrados em película de forma tão bela.
Essa estada brasileira de Welles se tornou matriz do cineasta brasileiro Rogério Sganzerla, papa do cinema dito marginal e autor de uma das obras-primas do cinema brasileiro, O Bandido da Luz Vermelha (1968). Sobre Welles e sua “desastrada” experiência cinematográfica nos trópicos, Sganzerla filmou Nem Tudo É Verdade (1986), Tudo É Brasil (1987), A Linguagem de Orson Welles (1990) e O Signo do Caos (2003), seu último filme e testamento.
Via Sganzerla, mas também por via direta, Welles atingiria a geração mais jovem do cinema brasileiro, em especial em Pernambuco, epicentro do melhor cinema de autor praticado hoje no País. Thats a Lero Lero (1994), de Lírio Ferreira e Amin Stepple, faz ficção sobre uma visita real de Welles ao Recife durante a filmagem de Its All True. Na verdade, uma grande farra, durante a qual, entre bares e cabarés, Welles troca ideias com jornalistas locais. Desse veio nasceria o novo cinema pernambucano, batizado de Árido Movie, com seu longa inaugural, Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, marco fundador do novo cinema pernambucano e seus autores, rebeldes e criativos, como Lírio e Paulo, Claudio Assis, Hilton Lacerda e outros. Autores de filmes que trazem uma inequívoca marca wellesiana.
De qualquer forma, se para o Brasil a conturbada passagem de Welles gerou bons frutos, para ele mesmo pode ter sido problemática e mesmo trágica. Nunca mais readquiriu a confiança dos produtores e teve de fazer seus filmes com muita dificuldade, de maneira independente (o que, por outro lado, beneficiou a autoria desses filmes).
O fato é que, durante muito tempo, Welles foi considerado cineasta de uma obra só, tamanha a influência de Cidadão Kane que, apesar de ocupar durante muito tempo o topo do cânone do cinema de autor, não foi a unanimidade que se pensa. Houve tentativas de diminuí-lo e obras famosas relativizam o mérito de Welles no próprio filme.
A mais conhecida talvez seja Criando Kane (Record, da crítica da New Yorker Pauline Kael), tentativa de colocar o roteirista Herman Mankiewicz como grande responsável pelas qualidades de Kane. Welles nunca negou a importante participação de Mankiewicz na obra – inclusive é do roteirista a invenção de “rosebud”, a última palavra pronunciada por Kane no leito de morte e cujo significado desconhecido estrutura toda a narrativa. Mas o fato é que, do roteiro ao filme o caminho é longo, como sabemos todos.
Aos poucos, as outras obras de Welles foram se impondo. A Marca da Maldade, Grilhões do Passado, F for Fake (Verdades e Mentiras) e mesmo as inacabadas como Quixote. E, se essas obras não atingiram a altura de Kane (como poderiam?), mostram um cineasta sempre inquieto, renovador, corrosivo, jamais satisfeito com a forma atingida e dominada. Marcas, portanto, da modernidade e suas relações com a incompletude. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.