Variedades

Músicos de Portugal, Brasil, Moçambique e Cabo Verde fazem raro encontro em SP

A África de Manecas Costa cabe toda dentro de uma bacia. Mais precisamente de uma tina de plástico que ele enche de água enquanto fala com a reportagem do jornal O Estado de S. Paulo. “Se temos uma tina, temos uma festa. No meu país é assim.” Quando a bacia está quase cheia, ele tira uma cabaça cortada pela metade de uma embalagem de plástico, pede licença para o repórter e se ajoelha. Deita a cabaça até encostá-la na água e passa a tocar um ritmo afro com as duas mãos. Canta cada vez mais alto e, em minutos, faz do quintal do estúdio Pink Zebra, em São Paulo, algo parecido com o quintal da casa onde viveu sua infância, na Guiné-Bissau.

Outros músicos que estão ali esperando a vez para ensaiar se aproximam de Manecas, já tomado pela própria vibração. Mais alto, com uma espécie de cabelo black power desajustado e sorriso largo, Stewart Sukuma canta com ele em criolo, bate palma e puxa coros. Por um instante, faz do mesmo quintal uma porção da festa que em seu país, Moçambique, uma multidão conhece como marrabenta.

Cantores e músicos da África que fala português estarão a partir desta sexta-feira, 8, até domingo, 10, no Sesc Pinheiros, ao lado de artistas de Portugal e Brasil, para um encontro costurado pelo guitarrista norte-americano Lee Ritenour, um virtuoso da guitarra fusion com 17 indicações para o Grammy em sua carreira. O projeto de nome As Margens dos Mares propõe um desenho curioso ao reunir representantes de peso de países lusófonos em um formato colaborativo.

Na primeira noite, as jovens cantoras portuguesas Ana Bacalhau e Sara Tavares recebem Ivan Lins, Manecas Costa e um dos percussionistas brasileiros com a maior ficha corrida no exterior, Paulinho da Costa.

No sábado, 9, serão Manecas e a cabo-verdiana Mayra Andrade ao lado de Sukuma, a cantora Céu, Sara Tavares e Paulinho da Costa. E, no domingo, 10, todos de volta ao palco, com participação do guitarrista e produtor Lee Ritenour.

Lee tem longa relação com a música brasileira, mas, ironicamente, só se comunica em inglês para dirigir o projeto. “Em português, só sei falar as palavras feias”, ri, e explica: “O conceito do projeto é mostrar as semelhanças e os contrastes entre esses países. Não serão apresentações para fazer sobressair mais a música de um ou de outro lugar, mas um projeto de trocas”.

Ivan Lins saía da sala de ensaios no final da tarde de quarta-feira, 6, quando cruzou com a reportagem no corredor do estúdio. Estava exausto, depois de dois dias tomados pelas costuras que ajudou a planejar.

“Olha, tem uns caras que vão arrebentar neste show. Esse Manecas e essa Sara Tavares são demais.” De um músico com sua visão harmônica de inebriar jazzistas, seria interessante saber o que fica mais evidente quando se emparelham manifestações de linguagens africanas. “É como se o ritmo que eles trazem nos libertasse, e nos liberta mesmo.” Algum motivo para que esse ritmo ficasse em evidência histórica, ao contrário da música brasileira, mais contaminada pelas harmonias do jazz sobretudo no período pós-bossa nova? Quem fala sobre isso é Lee Ritenour. “Não existe uma cena muito grande de jazz nesses países (africanos), mas os jovens músicos que absorveram essas linguagem da forma deles também estão por lá. O funk que se faz nesses países, por exemplo, é muito forte. E o jazz é muito flexível e se mescla a tudo. Eu vejo grandes músicos no Japão, na China, no Leste Europeu.”

A presença da mão portuguesa colonizadora à frente das possíveis semelhanças musicais, para além do idioma, é um tema polêmico. Stewart Sukuma acredita que é inegável a presença de elementos portugueses nos ritmos tradicionais de seu país. “Seria impossível não haver, depois de quatro séculos de colonização.” A marrabenta, disseminada nas festas de Moçambique, seria um deles. Já Manecas Costa não vê assim.
“Os portugueses nos levaram seus costumes, seu sistema de ensino, mas nossa música tem uma identidade africana própria. Cada uma das etnias já tinha seu próprio instrumento quando eles chegaram.” E foi assim que a tina, de objeto, se tornou um gênero que só existe na Guiné-Bissau, assim como o gumbe. “Quando os portugueses se foram, os toca-discos deixaram de ter importância. Foi uma época em que começamos a sofrer também com a falta de energia elétrica. Assim, criar algo que não dependesse disso foi vital”, explica Manecas.

As vozes portuguesas, além da cabo-verdiana Mayra Andrade, são mais guiadas por melodias do que por ritmos. Ana Bacalhau tem trabalhos com sua banda, Deolinda, com a qual já veio ao Brasil. O fado está em suas veias, mas não só, e suas misturas incluem rock, jazz e blues. Quando ela passou por Ivan Lins, depois do ensaio, ele a abraçou para se despedir e disse, com generosidade: “Fiquei mais fã ainda de sua voz. E vamos fazer algo juntos”.

Sara Tavares, com origens cabo-verdianas, embora nascida em Lisboa, tem um timbre delicado, de agudos suaves, belíssimos, que a faz ser reconhecida a quilômetros. Em 2009, lançou um disco fabuloso, chamado Xinti. E, dez anos antes, já havia conhecido Ivan Lins quando gravou sua música Minha Estrela Mãe, com letra de Paulo de Carvalho, em seu segundo álbum, Mi Ma Bo, de 1999.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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