É de se estranhar que o artista Joan Miró (1893-1983) já tenha declarado o desejo de assassinar a pintura. “Só me interessa o espírito puro”, teria dito o artista em 1931 – e anos mais tarde, em 1973, o surrealista, um dos mais fascinantes criadores do século 20, chegou até mesmo a criar uma série de telas incendiadas. “Sou de um natural trágico e taciturno”, definiu Miró em entrevista ao pintor e crítico francês Yvon Taillandier, em 1959. “Em minha juventude, conheci períodos de profunda tristeza”, completou o pintor, escultor e gravador catalão indicando que, nos interstícios das representações de constelações, pássaros e figuras soltas do universo mironiano, há mais coisas, como a expressão de certa violência e uma intensa experimentação de materiais.
Tábuas de madeira e compensados já se tornaram suportes de suas pinturas, assim como lixas, lápis de cera, cordas e sacos plásticos foram incorporados às suas composições pictóricas. Miró também ultrapassou os limites da tela e firmou-se como prolífico gravador de variadas técnicas – sem contar a criação de peças em bronze, esculturas monumentais e painéis para espaços públicos, objetos de cerâmica e grandes tapeçarias. O caráter investigativo do artista transforma-se, agora, no mote de Joan Miró – A Força da Matéria, primeira grande mostra do surrealista no Brasil a ser inaugurada no sábado, 23, no Instituto Tomie Ohtake de São Paulo, e que depois seguirá para o Museu de Arte de Santa Catarina, em Florianópolis, onde será apresentada entre 2 de setembro e 14 de novembro.
A exposição, orçada em torno de R$ 5 milhões e realizada em parceria com a Fundação Joan Miró de Barcelona, traz ao País um conjunto de 112 obras produzidas entre as décadas de 1930 e 80 – são 41 pinturas, 22 esculturas, 20 desenhos, 26 gravuras e 3 objetos. Os trabalhos, pertencentes ao acervo do museu abrigado na cidade-natal do pintor e à coleção de sua família, ficarão até 16 de agosto na instituição paulistana, que apresentou, no ano passado, criações de outro nome do surrealismo espanhol, Salvador Dalí, e também está produzindo, para setembro, a exposição Frida Kahlo e As Mulheres Surrealistas no México.
Poesia
“Miró tentou fundir pintura e poesia e com esse propósito começou a simplificar a representação da realidade, como os homens fizeram na época primitiva”, explica Teresa Montaner, conservadora da Fundação Joan Miró, sobre a motivação surrealista do artista. “Com essa prática, ele conseguiu definir nos anos 30 e nos princípios dos anos 40 uma linguagem de símbolos e signos muito particular, além de promover uma nova cultura máterica em sua arte”, diz ainda Teresa sobre o período proposto pela mostra como ponto de partida para o mergulho na obra do catalão.
É do espírito do surrealismo, do qual Miró esteve imerso em toda a sua trajetória artística, condensar ideias e imagens em elementos únicos. Quando o pintor, escultor e gravador começou a se interessar pela experimentação mais intensa de materiais e do gesto, ele já havia deixado para trás a realização de pinturas de paisagens e retratos inspiradas pelo fauvismo e pelo cubismo (década de 1910) e identificado-se com a vanguarda surrealista durante a vivência em Paris (anos 1920). “Miró relacionava os nós e formas da madeira às experiências dos poetas com os sons das consoantes”, afirma Teresa Montaner. Para o escritor André Breton, o calado e obstinado espanhol era, afinal, “o mais surrealista dos surrealistas”.
Céu
A afirmação de Breton refere-se ao fato de o artista ter definido uma linguagem simbólica e poética tão particular movida pela “necessidade de chegar à pureza das coisas”. “Todo mundo tem seu inconsciente símbolos universais”, considera a conservadora da Fundação Joan Miró. Como completa a diretora da instituição, Rosa Maria Malet, seria difícil compreender os temas mais recorrentes da obra do pintor e escultor – “a mulher, os astros, os pássaros” – desconsiderando a tradição de sua terra, a Catalunha.
“Todas as fontes culturais ligadas às mitologias mediterrâneas fazem referência à mulher, como símbolo da vida e da fertilidade; aos astros, que marcam o transcorrer do tempo e o ciclo da vida; e aos seres alados, a meio caminho entre a essência terrena e a divina”, descreve Rosa Maria. “O espetáculo do céu me comove. Sinto-me comovido de ver, num céu imenso, uma lua crescente ou o sol. Por outro lado, há nos meus quadros formas pequeninas em grandes espaços vazios. Os espaços vazios, as planícies vazias, tudo que se encontra nu sempre me impressionou muito”, afirmou Miró em 1959 na já referida entrevista a Taillandier.
Para o público que apenas considerava o catalão o criador de obras lúdicas – e, por vezes, até ingênuas -, a exposição Joan Miró – A Força da Matéria revela, por meio de segmentos cronológicos, a construção de uma produção surrealista repleta de referências, entretanto, não desprovida de um sentido de liberdade e experimentação. “A morte da pintura está para Joan Miró como a morte de deus esteve para Friedrich Nietzsche. Foi fundamental que saísse da equação para que o exercício da arte, que é o mesmo que dizer vida, correspondesse à mais do que genuína personalidade do mestre catalão”, define o escritor Valter Hugo Mãe em texto para o catálogo da mostra. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.