Ornette Coleman não se sentiu muito confortável quando os críticos atribuíram ao saxofonista a criação de um novo gênero musical, o free jazz, termo cunhado logo após o lançamento de seu histórico LP Free Jazz: A Collective Improvisation (1960). Não era seu primeiro disco. Já havia gravado cinco antes desse, mas foi com Free Jazz que a liberdade de improvisar dos músicos acompanhantes foi levada ao paroxismo – e não eram simples coadjuvantes, mas gente do nível de Don Cherry e Freddie Hubbard (trompetes), Eric Dolphy (clarinete), Scott la Faro (baixo) e Billy Higgins (bateria), entre outros. Nunca antes, na história do jazz, um disco trouxera uma sessão de improviso que corria ininterrupta por 40 minutos sem que alguém precisasse agitar a bandeirinha para reprimir a liberdade criativa dos músicos. Nesta quinta, 11, no hospital Beth Israel de Nova York, um pouco dessa liberdade morreu com Ornette Coleman, que sofreu uma parada cardíaca, aos 85 anos, despedindo-se do jazz e da vida.
Ornette Coleman ficou incomodado com a repercussão do disco Free Jazz também porque, embora os críticos o destacassem como um inovador tão importante como foi Charlie Parker para o bebop, não reconheciam o material temático como grande composição – e ele se considerava, acima de tudo, um autor, não de grandes melodias ou standards, como Cole Porter, mas um compositor de peças que fluem como um rio musical agitado e dissonante. Coleman, ao contrário de Parker, nunca foi reverente ao repertório de standards nem se interessava em improvisar sobre os clássicos do jazz, embora, vez ou outra, se curvasse a uma composição de Thelonious Monk ou Gershwin. Mas foram raras essas ocasiões.
De modo geral, a abordagem de Coleman era experimental, o que o aproximou de outros músicos de igual vocação, como o saxofonista Albert Ayler, com o qual gravou, em 1964, a antológica – e hoje raríssima – New York Eye and Ear Control, trilha sonora radical improvisada para o filme homônimo do artista plástico e cineasta canadense Michael Snow. Ayler, Don Cherry e o dinamarquês John Tchicai morreram, mas sobrevivem alguns companheiros da empreitada, entre eles o baixista Gary Peacock, um dos preferidos de Keith Jarrett ao lado de Charlie Haden, colaborador próximo de Coleman, que com ele formou um quarteto ao lado de Don Cherry e Billy Higgins.
Sua amizade com Albert Ayler, porém, foi decisiva para que Coleman descobrisse outros instrumentos além do saxofone que o celebrizou. Ayler, que morreu jovem, aos 34 anos, em 1970, é lembrado por ter tocado no funeral de John Coltrane, em 1967, uma melodia estridente, seguida de outra muito suave, um choque para os presentes. A espiritualidade de Ayler era tão sincera que ele convenceu Coleman a aprender trompete e violino para superar um lado reprimido na infância, pobre a ponto de enxotar para a rua o pequeno Ornette com uma caixa de sapateiro nas costas. O saxofonista, mesmo empunhando o violino com a mão esquerda, acabou desenvolvendo sua técnica, que lhe seria útil para dialogar com o baixo de Haden e, mais tarde, em 1982, para abraçar a jazz fusion.
Coleman foi acima de tudo um músico aberto a experiências. Errou, mas acertou um bocado. Foi humilde o suficiente para seguir rigidamente partituras alheias, como o fez na trilha do filme Almoço Nu (Naked Lunch, 1991), que Howard Shore compôs para o cineasta canadense David Cronenberg. Ou se associar a Pat Metheny no disco Song X (1985), lançado como um produto do guitarrista quando Coleman foi coautor de todas as composições. Coleman nem ligou. Para quem foi engraxate e ascensorista e cresceu numa América racista, ter ou não crédito era o de menos. Coleman não conhecia sequer o saxofone quando criança. Viu um homem tocar, pediu para a mãe comprar, mas o dinheiro, no Texas, em plena Depressão, era curto. Não comprou um sax de metal, mas um de plástico. Foi seu marco zero.