Curador da exposição Guignard – A Memória Plástica do Brasil Moderno, que será aberta nesta terça, 7, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), o crítico Paulo Sergio Duarte escolheu o caminho temático para sintetizar a trajetória do pintor em 72 obras. Duarte preferiu essa rota por entender que uma retrospectiva como essa deva não só deve atender aos iniciados na obra do pintor de Nova Friburgo (RJ) como aqueles que desconhecem seu lugar na história da arte moderna brasileira. Trabalhar com temas, e não com associações formais, pode ser problemático para curadores contemporâneos, mas não para Duarte, que entra deliberadamente na contramão das apresentações pós-modernas. “Cézanne era um artista absolutamente moderno e trabalhou com temas”, lembra. “Mesmo Picasso poderia ter uma exposição só de retratos”, argumenta.
Como Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) não tinha preconceito de gênero, sua retrospectiva está dividida em quatro temas: retratos, naturezas-mortas, obras sacras e paisagens. Em todas as salas destacam-se pinturas e desenhos que impressionam pelo olhar moderno de Guignard, formado nos museus e academias da Europa exatamente numa época, anos 1920, em que nasciam movimentos, escolas e salões transgressivos. “Não posso concordar quando atribuem a ele um olhar naïve”, observa Duarte. “Não se trata de um autodidata, mas de um artista formado em contato com movimentos como o cubismo, o expressionismo, o dadaísmo e o surrealismo, cujas escolhas formais são determinadas por sólidos conhecimentos técnicos e históricos.”
Para ficar num único exemplo dessa formação erudita, Duarte cita o diálogo de Guignard com tradições distantes, como a chinesa. “Germain Bazin, em 1946, foi o primeiro a notar a estreita relação das paisagens de Guignard com a arte oriental”, lembra. Quase na mesma época, o cubista argentino Emilio Pettoruti (1892-1971), amigo do pintor brasileiro dos tempos da Alemanha, deixou por escrito um depoimento que atesta esse interesse de Guignard pela arte oriental, aspecto pouco explorado quando se fala das paisagens do artista, reconhecido por vistas das montanhas de Minas em que igrejinhas flutuam livres da gravidade, seguindo os balões juninos.
É possível até evocar a atração que o surrealismo exerceu sobre Guignard, que conheceu o movimento em 1927, durante sua temporada alemã – seu “caminho para a libertação”, segundo um texto autobiográfico. Há na mostra três exemplos de collages surrealistas (de 1949) que não ficariam mal se associadas ao grande amigo de Guignard, Ismael Nery. As “paisagens imaginárias”, que abdicam do verismo em troca de uma pintura rala, quase oriental, poderiam igualmente ser definidas como fantasias surrealistas, oníricas – “além de servir a uma metáfora rudimentar de um país sem chão”, brinca o curador.
Guignard, que Duarte considera “a maior contribuição à arte moderna brasileira” ao lado de Goeldi e Lasar Segall, tinha um senso de humor parecido com o do curador. “A questão existencial, por exemplo, não entra nos autorretratos de Guignard, exceto quando ele associa seu drama ao martírio de Cristo.” Exemplo de seu humor, segundo o curador, é o autorretrato de 1919, um desenho a carvão sobre papel, feito durante seus estudos acadêmicos na Alemanha, em que Guignard, de cabeça inclinada diante do espelho, esboça um sorriso com seu lábio leporino.
Por causa dele, o drama do pintor cresceu a cada operação malsucedida que não conseguiu mudar sua aparência, conduzindo-o ao alcoolismo. Além disso, sua vida familiar foi uma ópera trágica, digna de Alban Berg: o pai se matou, a mãe se casou com um barão falido e jogador que dilapidou a fortuna da família, a única irmã de Guignard morreu tuberculosa, ainda jovem, e, para finalizar, ele foi abandonado pela mulher, a estudante de música alemã Anna Döring, poucos meses depois de seu casamento em Munique, em fevereiro de 1923. Ao retornar ao Brasil, em 1929, após expor no Salão dos Independentes, no Grand Palais, ao lado da futurista Natalia Goncharova, Guignard tentou encontrar ambiente entre poetas (Murilo Mendes e companhia) e artistas com afinidade espiritual (como Ismael Nery). Bom retratista, pintou homens e mulheres da classe alta nos anos 1930 e 1940 – entre eles o das irmãs gêmeas Lea e Maura, sendo a primeira mãe do artista contemporâneo Tunga. A tela hoje pertencente ao Museu Nacional de Belas Artes.
Muitas instituições, além do museu carioca, cederam obras para a exposição, entre elas o MAM (de São Paulo e do Rio) e a Pinacoteca. Coleções particulares (Gilberto Chateaubriand, Roberto Marinho) também colaboraram. Entre as preciosidades destaca-se a versão de A Família do Fuzileiro, que tanto impressionou Mário de Andrade por sua “brasilidade”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.