Variedades

Com Filarmônica de MG, pianista Nelson Freire volta a tocar em Boa Esperança

Rogério nasceu ali mesmo no sul de Minas. Já fez muita coisa, mas, nos últimos quinze anos, tem dirigido um táxi em Boa Esperança. Na manhã de sábado, passando pela Praça do Fórum, fica em dúvida. O palco já está montado, as cadeiras começam a ser colocadas. São três mil. “Acho que não vai dar, não. O pessoal da cidade tá ansioso. O povo aqui não é bobo, não, tem bom gosto. E o homem é filho da terra, né? Parece que já tá aí.”

O filho da terra é o pianista Nelson Freire – e, sim, já estava: chegou na noite de sexta à cidade, onde, no sábado, faria o primeiro concerto em sua terra natal em mais de duas décadas, ao lado da Filarmônica de Minas Gerais. Mas a jornada do pianista em direção a Boa Esperança começou na quinta, quando desembarcou em Belo Horizonte e seguiu direto para a Sala Minas Gerais. Passou a tarde estudando – e tentando se desvencilhar das equipes de TV que o aguardavam. E, no começo da noite, passou pelo lançamento do livro “Nelson Freire: A Pessoa e o Artista”, do amigo – e marido de sua prima Janice – Ricardo Fiúza.

Na manhã de sexta, mais algumas horas de estudo. E uma pausa para conversar com a reportagem. “Acho que é a primeira vez que uma orquestra toca lá e eu queria que fosse assim, em praça pública”, ele diz. E logo se entrega a algumas lembranças. Como a do primeiro recital, no Cine-Teatro Brasil. Ele tinha cinco anos e tocou peças como “La Vie en Rose”, “La Paloma” e “Quizas, Quizas, Quizas”. “Foi um começo cross-over”, ele brinca. “Mas eu me divertia também. A família era grande, eu tinha muitos primos, além dos meus irmãos. Eu adorava andar a cavalo, tomar banho no córrego, partir minhoca no meio e ver as metades se mexendo. Eles matavam passarinho com estilingue, mas isso eu não gostava. Só teve uma vez que eu tirei as asas de uma mosca, fui olhar ela com uma lente e acabei queimando a bichinha.”

A comida era “maravilhosa”. “Só que eu era uma criança doente, tinha muitas alergias. Mas tinha duas coisas de que eu gostava: palmito e ameixa. E arroz, feijão e linguiça, mas tinha que ser a linguiça de Boa Esperança, que era uma delícia.” Pausa. A orquestra está pronta, à espera de Freire. Hora, então, de ensaiar o “Concerto nº 4” de Beethoven, que ele vai interpretar em Boa Esperança, sob regência de Fábio Mechetti. Quarenta minutos depois, ele deixa o palco da Sala Minas Gerais sorridente. “E aí, gostou da interpretação?”, ele pergunta – e segue para o carro que vai levá-lo para o sul de Minas.

Duas babás e um piano

O roteiro Nelson Freire em Boa Esperança começa no centro do que chamam de “cidade antiga”. Atrás da igreja, está o terreno que um dia abrigou a farmácia Freire & Silva, que pertenceu ao pai do pianista. A casa já não existe, mas uma placa na calçada lembra o visitante de que “aqui nasceu Nelson Freire”. Subindo a Rua Direita, você logo cruza com a Rua Nelson Freire, batizada em sua homenagem quando ele ainda tinha 9 anos. Mais acima, o Radium Club, palco dos seus concertos depois da destruição do Cine-Teatro Brasil. E, enfim, a casa que pertenceu à Tia Marinha, mãe de Janice, onde o pianista está hospedado.

No começo da tarde de sábado, o vai e vem de parentes é incessante. São primos, irmãos, tios, sobrinhos, amigos, todos em torno da mesa do almoço, sobre a qual está a melhor comida mineira, apenas um prenúncio dos banquetes dos próximos dias: ontem, estava previsto um almoço na fazenda dos Pinto, família da mãe; e hoje, na dos Freire, parte de pai – nos dois casos, os herdeiros resolveram preparar os pratos tradicionais dos clãs. Em meio à movimentação, o professor Fiúza, jornalista e advogado, conduz a reportagem. “É a Sala Nelson Freire”, ele diz, abrindo uma porta e revelando um pequeno cômodo com um piano, fotos e discos. “Eu mandei afinar o piano, já que o Nelson ia ficar aqui e ele precisa estudar”, conta. Freire bate na porta e entra. “Tá vendo esse piano? Foi nele que eu aprendi a tocar o Concerto de Grieg”, revela, divertindo-se.

“Depois de mudarmos para o Rio, voltávamos para passar as férias. Era muito gostoso, mas eu precisava estudar também. Tinha essa casa, da Tia Marinha, com um piano. A Tia Marinha era mais séria, organizada, com uma babá muito brava, então era o lugar de eu estudar. Já na casa da Tia Marília, que ficava mais para o sul, a gente podia fazer o que quisesse. A babá era ótima, a Marilda.” O pianista pede licença, precisa descansar um pouco, se despede. Tem concerto à noite.

“Ele é seu tio”

O movimento na Praça do Fórum começou por volta das 18 horas, quando orquestra e pianista testavam o som. O publico começou a chegar aos poucos. Um drone sobrevoou a plateia. “Ih, arruma o cabelo, nós vamos sair lá nos Estados Unidos”, diz uma senhora à amiga. “Não, deve ser na Europa, é lá que ele mora”, responde a outra. Na frente, um espaço reservado para a família. Um casal de moços explica para o filho pequeno, algodão doce na mão. “Tá vendo aquele homem ali no piano?” “Qual?” “Aquele ali tocando.” “Agora eu vi.” “Então, ele é seu tio, sabia.” Do outro lado, um grupo de crianças. “Parece que ele é o maior do mundo”, diz uma. “Não, é o terceiro.”

O concerto começou com o Hino Nacional. O maestro Mechetti falou, então, sobre o Concerto de Beethoven e introduziu o pianista. Freire foi ovacionado de pé antes e depois da interpretação, e ofereceu dois bis de brinde. A orquestra seguiu com a apresentação, tocando obras de Wagner, Tchaikovsky, Carlos Gomes – e um arranjo de “Serra de Boa Esperança”, de Lamartine Babo. O pianista, enquanto isso, sentou-se no fundo do palco. Foi muita emoção, disse, já desde antes de entrar no palco. Lembrou também da lua, pairando sobre a plateia. “Você viu o silêncio que eles fizeram?”, perguntou. E quis saber: “Você acha que eles gostaram?” Muito, Nelson. Segundo a polícia militar, aliás, sete mil pessoas estiveram na praça na noite de sábado. Rogério tinha razão. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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