Um mundo preto e vermelho, vertical e ordenado, logo atravessado pela potência do galope urgente de Mariana do Rosário, um relâmpago que rasga o espaço a golpes de cabeça. Sua dança alcançou a sabedoria: nada escapa ao rigor com que lapida cada detalhe. Impositiva, sua cabeça se lança para trás e, ao mesmo tempo, alarga o espaço na frente. E a luz de Paulo e Gabriel Pederneiras, caravaggianamente escava dos escuros alguns contornos de corpo, banhando pedaços de amplitudes, encolhendo para ser esticada.
Dança Sinfônica, coreografada por Rodrigo Pederneiras, ecoa o jeito com que Marco Antônio Guimarães, na sua poderosa composição, lida com os materiais já criados e os recém-inventados. Música e dança instauram uma mandala com esse jogo entre trás e frente, que vai, aos poucos, escancarando a sua força metafórica. Bailarinos andam para trás, atiram a cabeça para trás, mas estão sempre rasgando o ar, como quem toma impulso para a frente.
Esta é a obra que celebra os 40 anos do Grupo Corpo, em um programa que a companhia estreia nesta quarta, 12, em São Paulo, no Teatro Alfa, que expõe o mesmo tipo de articulação: começa inaugurando um futuro com Suíte Branca, de Cassi Abranches, e se encerra com um pouco da sua memória na Dança Sinfônica. Mas esse para frente e para trás se enrosca um no outro, embolando o antes com o depois, pois coabitam na tensão de um agora costurado em dobras e protuberâncias.
Graças à dedicação e competência desse elenco de 21 bailarinos estrelas, burilados pelas assistentes de coreografia Carmen Purri, Ana Paula Cançado e Miriam Pederneiras, que sabem como fazer do seu trabalho rigoroso uma ação artística, isso se torna visível.
O programa inicia com as intensidades do branco, produzidas pela luz de Paulo e Gabriel Pederneiras no cenário criado por Paulo. Ele vai sendo tingido por sombras, reentrâncias se transformam em penhascos e, em seguida, viram mares e vales, para depois fazer com que os relevos desapareçam. Ao som da trilha composta por Samuel Rosa com o Skank, os corpos levantam-se para cair, mas também intentam ignorar a gravidade. Querem caminhar pelo espaço, manter-se nele por alguns instantes a mais, antes de voltar para o chão.
Cassi Abranches sabe de onde vem, por isso já consegue apontar para onde deseja e pode ir. Não esconde a coleção sólida de informações de quem dançou por 12 anos com a companhia para a qual agora coreografa. É natural que parta do que está em seu corpo. Contudo, já dá a ver que tem outros olhos para o que aprendeu. Com empenho, vai talhando síncopes que ambicionam ser um pouco mais sinuosas, que ambicionam o espiralamento. Parece querer tratar o corpo como uma condição material para dele o movimento escorrer sem tanta dependência da métrica do compasso. Não há nada de evanescente nessa busca, e quando mostra uma linha frontal de corpos, explicita esse ímpeto para circuitos sem rejunte porque eles devem nascer sem vãos.
Nesta suíte, o figurino de Freusa Zechmeister superpõe camadas, dessincroniza linhas e cortes, para que o movimento rabisque as suas ligaduras no espaço. Em Dança Sinfônica, organiza uma família de elegâncias traduzidas em cores, texturas e volumes discretos. Funde os bailarinos no ambiente no qual dançam, formulado por Paulo Pederneiras no vermelho do veludo que intervala e, ao mesmo tempo, alinhava o contorno da cena. Por vezes, os veste como rimas, por vezes, como presságios de uma sofisticada mistura do antes com o sempre, tecendo algo da memória de suas criações para a companhia com a da história da dança.
O jogo trás-frente da Dança Sinfônica pontua o encontro da linha que fatia o espaço com a força do giro, e com o 3 dos trios e das triplicações dos duos. Há dois momentos – os pas de deux de Sílvia Gaspar com Edmárcio Júnior e Helbert Pimenta – que alisam o afã dos movimentos rápidos que jorram do seu atamento aos pulsos dessa música de tantas camadas a serem descobertas, que vai nos convocando à medida que vai revelando a sua genialidade.
Rodrigo Pederneiras, uma autoridade inconteste quando o assunto é pas de deux, parece dedicar estes dois a uma reflexão sobre o inevitável. Destituída do sopro que faz viver, Sílvia não se sustenta, precisa ser conduzida, amparada; arqueia e, para permanecer, não se solta. Abandono e austeridade vão se alternando, engancham forte e não trincam.
No final, um mosaico com as partes usadas até então na coreografia, e que trazem materiais de outras de Pederneiras, nos lembra que a vida, ela também um jogo entre trás e frente, se sabe pespontada pela finitude. Para seguir, é preciso acolher e abrigar. O afeto do abraço embala o desalento da solidão solene porque irremediável. No envelope que nos entrega dessa vez, Rodrigo Pederneiras não deixou vazio o espaço para a emoção. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.