No mais recente livro do escritor cearense Ronaldo Correia de Brito, O Amor das Sombras, o último conto, Lua, relata a odisseia de seu frustrado reencontro com o mundo mítico da infância para montar a trilha da versão cinematográfica de Lua Cambará – a história de uma Lilith negra, filha bastarda de um coronel com uma escrava, que cresce como a própria encarnação do demônio, torturando seus pares. Brito estava pesquisando as músicas que seriam usadas no filme, mas não encontrou nada do que via ou ouvia em sua infância no Crato. Aquele mundo havia desaparecido com o cerco da modernidade tecnológica. Como, então, ele poderia escrever algo parecido com Faca (Cosac Naify, 2003), o livro de contos que o tornou conhecido do leitor brasileiro?
Brito ganhou, em 2009, o prêmio São Paulo de Literatura com o seu primeiro romance, Galileia. Também nele, a busca daquele mundo agrário, pré-moral, redundava numa enorme frustração – do autor, não do leitor. Em Galileia, o mundo mítico, camponês, definha na cama de um patriarca de família gigantesca numa fazenda com o sugestivo nome que dá título ao livro. Seus personagens erram pelo sertão cearense como os de um épico bíblico, num embate com Deus e o diabo, perdidos num mundo que se decompõe em transfiguração sacrílega, consumido pela globalização.
Os livros que vieram a seguir (Retratos Imorais e, mais recentemente, Estive Lá Fora) se afastaram do universo de Galileia para abraçar dramas urbanos. Agora, com O Amor das Sombras, ele retoma questões da passagem de uma civilização agrícola para um estágio que não é necessariamente mais avançado, pagão, neocapitalista, em que a agressividade individual se amplifica, desde o primeiro dos 12 contos do livro, Noite, uma investigação crua da relação dialógica entre tradição e modernidade, cujo ponto de partida é uma casa simbolicamente transformada em museu, onde vivem duas velhas irmãs solteironas.
Erguida há quase dois séculos, a casa é quase uma representação metafórica do fim da sacralidade em estado puro, de uma catedral em ruínas que enterrou o velho núcleo familiar, agora cercado pelo terrorismo das máquinas e tratores que avançam sobre o passado. “As tragédias familiares”, reflete o autor, “se repetem em ciclos, sazonais como as chuvas e os verões”. E, na família das irmãs Mariana e Otília, pai e mãe engendraram 23 descendentes – alguns condenados a viver num mundo tecnocrático ou pelo menos hostil ao humanismo, o que leva um deles, um seminarista feminino e frágil, a se imolar à beira de um riacho seco.
“Há sempre uma história de família em meus contos”, observa Correia de Brito, escolhendo como seu favorito o segundo deles em O Amor das Sombras. Bilhar tem uma família disfuncional. Marido e mulher brigam o tempo todo por causa de religião. Ela quer converter o “infiel peludo”. Ele vai a bordéis e surra padres, até que, ameaçado de excomunhão, decide mudar-se para um bairro pobre. O filho busca num professor de português a figura do pai, descobrindo com ele a poesia de Quevedo, a partir da leitura do soneto Amor Constante Mas Allá de la Muerte, que revela a ele não só seu gosto pela morbidez, mas o desencanto com a vida que passa sem deixar rastro.
Em Força, conto predileto de Belinda, a mulher de Correia de Brito, a fantasia também tem hora marcada para morrer. Nele, uma pintora vai perdendo gradativamente a memória, mais ou menos como aconteceu com a artista paulistana Niobe Xandó que, no fim da vida, pintou o mesmo autorretrato de juventude, mas sem o rosto, como se não reconhecesse a própria face no espelho.
Dramas como esse, de pessoas com Alzheimer ou dependentes de álcool, como o ex-jogador de futebol do conto Magarefe, que vai agonizar num hospital, fazem parte do cotidiano do escritor. Ele também é médico, como o foram Guimarães Rosa e Chekhov – está completando 40 anos de profissão, na ativa. Há um mês e meio, tenta recuperar um paciente de 19 anos, dependente de drogas e atropelado por um carro. Esse convívio com a dor e a morte se reflete na literatura do escritor que, como todos os que têm uma vocação, passam por traumas individuais produzidos pela vida social – e sofrem muito com isso.
Pelo hospital, passam garotos viciados em crack, maconha, cola, álcool. O médico sente-se impotente diante da tragédia que testemunha sem poder fazer muito além de transformá-los em personagens de suas crônicas no jornal O Povo. Ou do próprio livro de contos. Um deles, chamado Amor, reescrito e originalmente lançado (em Faca) como Mentira de Amor, vai virar série de TV dirigida por Marcelo Gomes e está sendo filmado na França, onde foi traduzido, por quatro cineastas.