Variedades

Exposição mostra domínio técnico e expressivo de André Ricardo

Raras vezes na história da arte contemporânea brasileira surge um caso como o do pintor paulistano André Ricardo, que, aos 30 anos, exibe maturidade suficiente para justificar uma aposta em seu nome. Sua segunda exposição individual na Galeria Pilar, Elemento Vazado, em cartaz até o dia 26, é uma prova contundente de domínio técnico e expressivo. Mais que isso: o processo de fatura de suas pinturas revela reverência à tradição modernista, em particular a Volpi, um dos pintores de seu Olimpo privado. Nele ainda figuram nomes como Rothko e John Zurier, o californiano que começou sua carreira encarando um desafio monumental: o de pintar o céu entre dois edifícios, de modo a não existir nada na tela além do profundo e enigmático azul. Zurier teve de admitir seu fiasco. E fracassou ainda mais uma vez, até concluir, a exemplo do japonês Ike no Taiga (1723-1776), que o mais difícil na pintura é criar um espaço em que absolutamente nada foi pintado.

Diante das telas de André Ricardo, em exposição na Galeria Pilar, o visitante pode igualmente concluir que a grande tarefa dele é pintar o vazio. Em sua primeira exposição na galeria que o representa, Caçambas e Escavadeiras, aberta em 2012, havia nesse “vazio” figuras “claramente identificáveis, prosaicas e com francas conexões com a trajetória da vida do artista”, como observou o curador da mostra, Cauê Alves. As caçambas de caminhões, apenas sugeridas por formas sintéticas, evocavam o passado profissional do artista, que trabalhou durante algum tempo numa loja de materiais de construção para conseguir estudar arte.

Nascido no Grajaú, subúrbio de São Paulo, filho do porteiro José Arnaldo de Souza e da funcionária pública Neuza Maria de Almeida, André Ricardo lutou para chegar à universidade. Enfrentou longas viagens de trem da estação Primavera, em Interlagos, até o campus da USP, onde foi aluno de Sonia Salzstein, Marco Giannotti, Marco Buti e Carlos Fajardo, entre outros. Nesse trajeto, ocupava o tempo desenhando passageiros dormindo, alheios à paisagem que passava pela janela do trem. Essa impressão, de estar fisicamente conectado a um ambiente e, ao mesmo tempo, desligado dele, marcou de forma definitiva a pintura de André Ricardo, que afirma positivamente o mundo real. É dessa concretude que nasce a sua construção pictórica.

No começo, bem no começo, essa era uma paisagem idealizada, importada dos mestres. Dona Neuza, percebendo o talento do filho, levou-o a uma Casa de Cultura, no Grajaú, quando ele tinha apenas 11 anos. Lá, ele aprendeu a desenhar. Quatro anos depois, já dava aulas particulares para comprar seu material de pintura, além de fazer hora extra como arte-educador de crianças e adolescentes em abrigos. “Naquela época fazia muitas cópias para conhecer a técnica dos grandes pintores, como Constable e Gainsborough”, conta. Essa experiência foi muito útil – e não para que André Ricardo replicasse a luminosidade dos dois artistas ingleses, mas para mostrar, em seu projeto de pesquisa de graduação, como essa luz se transformou, adaptada aos trópicos pelos pintores brasileiros do século 19.

Ele recorreu novamente a essa pesquisa para a elaboração da recente série de pinturas da exposição Elemento Vazado. Recurso arquitetônico que permite a passagem da luz do ambiente externo para o interno, esse elemento vazado, transposto para o campo pictórico, assume a ambivalência dos vitrais da Idade Média, diz André, que, simultaneamente, deixam passar e bloqueiam a luz. Ele cita Umberto Eco em seu livro Arte e Beleza na Estética Medieval, que versa sobre a luz original, divina, que chega até nós alterada pela matéria. De modo similar, o pintor usa têmpera (que muda a natureza do pigmento) também como metáfora dessa luz. Em tempo: ele não é religioso nem acredita que seu trabalho tenha a dimensão espiritual da pintura de Mark Rothko.

“Busco entender de forma mais ampla, num sentido mais construtivo, o que a tradição concreta legou a nós, pintores contemporâneos”, observa. A curadora de sua exposição, Ana Avelar, nesse sentido, faz uma remissão às superfícies moduladas da artista neoconcreta Lygia Clark – obras em que pintura e suporte se confundem – para falar dos encaixes do pintor paulista, que, segundo ela, são derivados das formas da série Escavadeiras.

A despeito dessa derivação, a pintura de André Ricardo não é serialista, adverte o artista. “Apresentar o desdobramento do problema é natural para quem, como eu, escolheu trabalhar com objetos comuns, como caçambas, escavadeiras, ou signos gráficos da cidade”, explica. É possível reconhecer essa transformação – do ordinário em extraordinário – nas formas geométricas irregulares das telas e nas cores fortes, cromatismo que reflete a experiência urbana – há nessa pintura, por exemplo, o amarelo vivo e o preto das placas de trânsito. Porém, a pintura que domina a mostra é uma têmpera e caseina sobre linho e papel colado à madeira, em que ele dialoga com Mira Schendel. Nela, um objeto em branco e azul da Prússia alude novamente à forma de uma escavadeira.
O seu é um trabalho de depuração. Para não esquecer sua origem. E para não ser esquecido por quem sabe reconhecer uma grande pintura. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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