O escritor modernista Mário de Andrade (1893-1945) era um missivista compulsivo. Escreveu 20 mil cartas, algumas reunidas na exposição Mário de Andrade – Cartas do Modernismo, que o Centro Cultural Correios de São Paulo abre neste sábado, 19, com curadoria de Denise Mattar e cenografia de Guilherme Isnard, exibindo ainda obras de arte da coleção do autor, hoje no acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB).
Até porque se trata de uma mostra sobre a correspondência do escritor com os principais artistas de sua época, as cartas selecionadas dizem respeito às obras expostas – algumas reproduzidas, outras originais. A curadora Denise Mattar já organizou no passado mostras de alguns desses artistas do modernismo brasileiro. Assim, virou uma pesquisadora em tempo integral dessas cartas do IEB.
Em 2012, em comemoração aos 90 anos da Semana de Arte Moderna, ela organizou a atual mostra com as cartas do modernismo, que já passou por Brasília e Rio de Janeiro, atraindo centenas de visitantes. “Meu objetivo foi o de montar uma exposição com vários níveis de leitura para um público amplo”, diz a curadora, justificando a preocupação didática que teve ao introduzir Mário a pessoas que pouco conhecem ou simplesmente desconhecem sua importância para o advento do modernismo brasileiro, do qual foi o principal articulador. As cartas revelam os bastidores dessa revolução: Mário convocando a volta dos modernistas de Paris ou ajudando artistas como Brecheret a vender obras à aristocracia paulista – entre elas, a escultura hoje instalada na sepultura da mecenas do modernismo, Olívia Penteado.
Dividida em dois períodos do modernismo, a exposição traz no primeiro núcleo obras produzidas na temporada francesa de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, as duas principais pintoras do movimento. Com Anita, segundo a curadora, a relação era mais fraternal, contrariando as expectativas da artista, que esperava um tratamento mais apaixonado, como o dedicado por Mário a Tarsila, que ele trata nas cartas como “deusa”. Alguns meses depois da Semana, Mário escreveu uma carta a Tarsila, em dezembro de 1922, em que fala do prazer de tê-la a seu lado, isso um mês após ter chamado a pintora de “caipira em Paris”, desafiando-a a voltar à “mata virgem”.
No segundo bloco da mostra, destaca-se a relação de Mário de Andrade com o pintor Candido Portinari, que descobriu em 1931 e, desde então, tornou-se a referência que considerava essencial para outra revolução modernista, não apenas formal, mas política. Ele acabou se identificando demais com Portinari. Numa carta ao primeiro, de março de 1935, ele compara dois retratos seus feitos por ele e Segall. Diz que Segall revelou o seu lado “diabólico”, as “tendências más” que ele procurava vencer. Já Portinari, segundo Mário, revelou o seu lado “bom”. “Seu quadro me dá uma confiança em mim, me dá mais vontade de trabalhar, de continuar, é um verdadeiro tônico”.
Bem, trabalhar era mesmo com ele, menos no carnaval. Em fevereiro de 1923, Mário escreve uma carta pedindo desculpas ao poeta Manuel Bandeira por ter faltado a um encontro marcado. “Meu Manuel…Carnaval…Pedi o trem, perdi a vergonha, perdi a energia… perdi tudo. (…) Mas… que delícia, Manuel, o Carnaval do Rio”. Pela carta, Mário deixou o julgamento de lado (ele confessa ter ficado enojado com tanta “vulgaridade” carnavalesca) e caiu na farra, seguindo um folião por uma hora e se divertindo quatro noites inteiras.
Na hora da crítica, porém, ele podia ser mais rígido que a morte. Numa carta a um “pintor moço”, endereçada a B., ele desmonta o artista, criticando seu excessivo apego ao formalismo. “É bem provável que o B da carta seja o Bianco, o Enrico Bianco, assistente de Portinari”, revela a curadora Denise Mattar. Mário, comentando sua individual, em junho de 1942, escreve que os quadros expostos “são muito piores que os mostrados na exposição anterior! E quer saber por quê? Porque da última vez a sua arte era uma festa, era um cântico de felicidade…”
Não faltava igualmente a Mário uma boa dose de autocrítica. Numa das mais reveladoras cartas da exposição, endereçada à poeta mineira Henriqueta Lisboa, em julho de 1941, o escritor fala dos retratos que amigos pintaram dele – entre eles, os de Portinari e Segall, na exposição – e, em particular, das mudanças que gradativamente marcaram suas feições nos retratos feitos por Anita Malfatti (e ela pintou mais de 20). Depois da Semana, ele perdera todos os alunos e passava dias inteiros em seu ateliê. “Como não tínhamos o que fazer, ela fazia meu retrato.” À medida que a camaradagem esfriou entre os dois – “o amor não correspondido”, a “desilusão do sexo” -, os retratos foram ficando diluídos como uma pintura de Dufy. O grupo modernista se desfazia – e com ele a ilusão de que as revoluções duram para sempre. “Nós nos achávamos invariavelmente uns gênios e cada obra que fazíamos uma obra-prima imortal”, escreve o já combalido Mário. Ele viveria ainda quatro anos. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.