Em 2004, quando o papa Francisco era arcebispo de Buenos Aires, investiu contra uma exposição do artista argentino León Ferrari (1920-2013) no Centro Cultural Recoleta, conclamando a comunidade católica a rezar contra as collages heréticas da mostra. O arcebispo Bergoglio chegou mesmo a apelar para que a retrospectiva de seu conterrâneo fosse fechada. Quatro ameaças de bomba depois, o próprio Ferrari, temendo pela segurança dos funcionários do museu, determinou o encerramento da mostra.
Quem não a viu pode ver agora alguns trabalhos nela exibidos e que integram o acervo do Museu de Arte de São Paulo (Masp – Av. Paulista, 1.578). A exposição León Ferrari: Entre Ditaduras reúne 90 obras do artista, entre elas collages das séries Releitura da Bíblia e Para Hereges, com curadoria da museóloga Julieta González, diretora interina do Museu Jumex, na Cidade do México, e de Tomás Toledo, curador adjunto do Masp.
A exposição, é bom alertar, não é para católicos que se chocam com a liberdade de interpretação dos textos bíblicos por artistas contemporâneos, especialmente empiristas heréticos como Ferrari.
Ele morou no Brasil entre 1976 e 1991, fugindo da sanguinária ditadura argentina, que sumiu com um de seus filhos. Em São Paulo, nos anos 1980, encontrou sua turma, artistas que faziam experiências com novos meios eletrônicos de reprodução, dando prosseguimento às pesquisas iniciadas na Argentina.
Entre as obras que integravam a retrospectiva argentina, a imagem mais polêmica era a de um Cristo crucificado num caça norte-americano carregado de bombas. O título da obra (produzida nos anos 1960, no auge da guerra do Vietnã) resumia o ponto de vista de Ferrari: A Civilização Ocidental e Cristã. Filho de um arquiteto construtor de igrejas, mas também herege, o artista argentino associava a força bélica e atômica ao poder absoluto de destruição, traçando uma correspondência analógica entre a ira bíblica divina e o genocídio praticado por dirigentes políticos.
Muitas obras foram destruídas no Centro Cultural Recoleta depois do apelo do futuro papa aos católicos portenhos, que compareceram em peso à mostra – não para ver, mas destruir algumas obras. Em 2007, ao ganhar o Leão de Ouro da Bienal de Veneza, o sarcástico Ferrari agradeceu ao papa. “Foi uma espécie de favor que me fez Bergoglio”, ironizou, mantendo até o fim da vida sua posição de confronto com a Igreja Católica. Ele plasmou em diversas séries a iconografia cristã dos grandes mestres pintores com imagens de bombas atômicas, fragmentos de gravuras eróticas orientais e referências da arte moderna, especialmente as séries picassianas que retratam orgias.
As principais ideias heréticas de León Ferrari, lembra a curadora Julieta González, estão expressas no livro Palabras Ajenas, de 1967, misto de peça dramatúrgica com roteiro contra ditadores de toda espécie, no qual o autor se apropria de discursos alheios e monta uma collage literária explosiva, em que caudilhos do passado contracenam com os do presente. “Não é uma collage dadaísta, porque, na peça, a palavra é precisa, tem uma presença forte, dirigida, sem apelar ao nonsense”, observa a curadora Julieta González. É possível perceber essa exatidão na escolha dos trechos do Novo Testamento da série Releitura da Bíblia, em que imagens de santos pintadas por renascentistas convivem com o espectro das guerras e o inferno do Apocalipse.
Em 1998, Ferrari enviou uma petição ao papa João Paulo II em nome do Clube de Ímpios, Hereges, Apóstatas, Blasfemos, Ateus, Pagãos e Infiéis, solicitando simplesmente a abolição do inferno. A Santa Sé negou-se a aceitar a petição. Em 2001, não satisfeito com a resposta, Ferrari reiterou o pedido. O Vaticano ignorou a petição.
O inferno continuaria existindo e ponto final. Em 2013, quando Bergoglio ascendeu ao trono e virou o papa Francisco, Ferrari brindou com uma taça de vinho branco e deu seu último suspiro. No ano passado, uma mensagem do papa deu a entender que o inferno é incompatível com o amor infinito de Deus. Reconciliados? Quem sabe.
O certo é que, na exposição do Masp, o inferno continua a existir e fica na Terra desolada dos grandes massacres praticados em nome de ideologias e religiões. O museu conserva as 100 obras que Ferrari, segundo o curador Tomás Toledo, doou ao museu ao voltar à terra natal. “Curioso é que descobrimos na biblioteca seis matrizes de obras heliográficas que não estavam catalogadas, um trabalho de arqueologia no acervo que nos fez descobrir peças raras”, revela o curador.
Elas estão expostas na segunda sala da mostra, que reúne trabalhos mais amenos que na primeira. Nem por isso fáceis. São signos gráficos que lidam com questões sociais. A figura dominante é a de um homenzinho reproduzido ad infinitum e que se integra a uma massa de sinais. Em outras reproduções dos anos 1980 (letraset fotocopiada em papel Fabriano), emerge um “código de sinais secretos” que se assemelham a hieróglifos e aos desenhos de Michaux. “A diferença é que Michaux lida com o inconsciente e os signos gráficos de Ferrari funcionam como parábolas políticas”, conclui a curadora da mostra.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.