A realidade alimenta a inquieta imaginação do encenador Roberto Alvim. Em 2014, ao observar os debates que marcaram a eleição presidencial, ele ficou impressionado com a forma como políticos manobravam as mesmas palavras, que ora serviam para conciliar, ora para atacar. Exatamente as mesmas. Alvim logo se lembrou da retórica emocional de Brutus e Marco Antônio, da peça Julio César, de Shakespeare. A partir dessa manipulação de afetos, ele construiu Caesar – Como Construir um Império, um estimulante debate sobre o jogo das palavras.
Como a política nacional dos dias atuais mais se parece com uma caixa de Pandora (na qual, acreditavam os gregos antigos, guardavam-se todos os males do mundo), Alvim continuou com sua sede de filtrar a realidade por meio da arte e, ao buscar uma obra literária que lhe servisse de ponto de partida para um novo trabalho, chegou ao romance Leite Derramado, de Chico Buarque de Hollanda, cuja versão pessoal pretende estrear em agosto, no Sesc Pinheiros.
“A partir desse livro, pretendo pensar a formação do Brasil por meio do teatro”, comenta o encenador. “Quero discutir esse ethos nacional, mas de uma forma diferente do que fizeram outros, como o realismo utilizado por Jorge de Andrade. Pretendo trabalhar o tempo (o nosso tempo) a partir do delírio do velho Eulálio.”
Publicado em 2009, Leite Derramado reproduz o monólogo de um homem muito velho, que está no leito de um hospital – o tal Eulálio. Dirigida à filha e às enfermeiras, a fala desarticulada do ancião cria dúvidas e suspenses e é por meio desse labirinto que Alvim retrabalhou o texto original, transformando-o em um espetáculo para 20 atores, além de música executada ao vivo por dez profissionais, liderados pelo filósofo Vladimir Safatle, também autor da melodia.
“Será uma recriação, mas mantida a essência do original”, comenta Alvim que, com o projeto, conseguiu empolgar Chico Buarque. “Ele gostou da ideia e assimilou a reconstrução de seu texto – afinal, ser fiel é saber se colocar no mesmo lugar pulsante que impulsionou o autor do original.”
Aos 42 anos, Roberto Alvim acredita ser esse seu principal projeto criativo. “Sinto ter me preparado até agora para enfrentar essa miríade de complexidades que estão no livro.” Assim, é importante contar com a parceria com Safatle, iniciada em Caesar. Mas, se nesse primeiro trabalho a música executada ao vivo impulsionava os atores a darem o próximo passo, mostrando como a história nos despossui de nossos atos, agora, em Leite Derramado, Safatle pretende trabalhar com a ideia de plasticidade temporal e de presença espectral.
“Neste caso, a função da música é a de construir uma dimensão de espectralidade, de liminaridade, para produzir uma espécie de rememoração delirante na qual presente, passado e futuro se contraem em uma só dimensão. Um delírio muito parecido com o que é viver no Brasil”, comenta.
É importante lembrar que Safatle não compõe uma trilha sonora, ou seja, um tipo de música que se rende à mera condição de ser um sinal de orientação para um caminho externamente decidido. “Nós quisemos tirar a música de suas trilhas e dar ao teatro uma polifonia que permitiria à cena lidar com discursos recalcados e estratos subterrâneos. Pois é da natureza da música escavar o que não se deixa facilmente representar”, justifica Safatle.
Como vai lidar com um conjunto de dez músicos que estarão tocando ao vivo, Safatle pretende fazer um curso de regência sinfônica, pois “não queria que minhas limitações técnicas fossem o verdadeiro horizonte da concepção musical”. Ele se prepara também para trabalhar com um tesouro precioso: as melodias de Chico Buarque.
“A música de Chico Buarque é um universo em si mesmo. Não faria sentido usá-la como material de base”, conta Safatle. “Mas a música partirá de uma concepção de tempo própria ao Leite Derramado que, a meu ver, é uma expressão maior da temporalidade histórica brasileira. Eu queria ser fiel a tal compreensão formal, fazendo da música um tecido de tempos em imbricação, de velocidades simultâneas. Um tecido no qual mortos e vivos convivem em uma espessura espectral.”
O universo de Chico Buarque recriado para o teatro contará ainda com uma cenografia que, segundo Alvim, será uma resposta estética ao texto, portanto, se parecerá com uma instalação. Para isso, ele já conversa com artistas plásticos como Nuno Ramos, Cildo Meireles, Adriana Varejão, convidando-os para também pensar o Brasil de hoje.
Antes de Leite Derramado, porém, Roberto Alvim vai dirigir Peer Gynt, uma das mais fascinantes peças do norueguês Henrik Ibsen (1828-1906) e que deverá estrear no primeiro semestre de 2016 no Teatro Porto Seguro. E, para o papel do irresponsável e aventureiro que vai prejudicando uns e outros pela vida, sem sequer se dar conta do que faz, será do comediante Eduardo Sterblicht, do programa Pânico na Band. “Ele tem a melancolia de Buster Keaton e o humor transgressor de Andy Kaufman. Sei que dará certo.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.