Enquanto Euclides da Cunha e outros correspondentes na Guerra de Canudos enviavam telegramas aos jornais para relatar o conflito com a maior quantidade de detalhes possível, os oficiais no comando da campanha contra os sertanejos mandavam mensagens criptografadas para o Ministério da Guerra. O Exército estava convencido de que aqueles homens e mulheres maltrapilhos, que resistiam às bombas em casebres de barro e palha do arraial de Antônio Conselheiro, pudessem ter informantes e apoios importantes na rede postal de Monte Santo, Salvador e Rio de Janeiro.
Documentos militares guardados em 11 caixas no Arquivo Histórico do Exército, no Rio, mostram, praticamente ao longo de toda a campanha, que os comandantes das tropas tiveram a mesma visão de parte considerável da opinião pública da capital, de que os moradores de Canudos eram movidos pela “bandidagem” e pelo “fanatismo”.
Uma análise dos documentos revela, aos poucos, falhas de comunicação, logística e estratégia de combate, as questões que mais doem em homens preparados para batalhas sangrentas. Os militares tentam, porém, justificar nos relatórios os erros grosseiros, que seriam revelados ainda no tempo da guerra, por parte do coronel Moreira César, chefe da terceira e penúltima expedição militar, morto em combate. Ele achou que seria fácil entrar em Canudos e resolveu atacar o povoado antes de organizar seus homens. “Vamos almoçar lá!”, disse, otimista. Os sertanejos esperaram a tropa se aproximar para surpreender Moreira César, que morreu sem pôr os pés no arraial. Um relatório suaviza os erros do coronel e aponta a falta de “cavalhada” como causa do desastre militar.
Estratégia
Na papelada, há relatos sobre oficiais que foram questionados por superiores por supostas falhas de estratégia militar. É o caso do major Febrônio de Brito, que por pouco não foi fuzilado pelos próprios companheiros. “Esse oficial foi preso sujeito a conselho de guerra”, registra um documento. Brito teria descumprido uma ordem ao recuar numa operação. Depois, numa suposta reavaliação do caso, o oficial foi libertado, pois teria tomado a melhor decisão na hora de se aproximar do arraial.
O fogo amigo e as suspeitas de traição atingiram até o médico pernambucano enviado pelo Exército para chefiar o Hospital de Sangue, instalado provisoriamente na cidade de Queimadas e depois transferido para as proximidades de Canudos. Enquanto tratava praças e oficiais feridos e contaminados, o major José Miranda Curió era acusado de desrespeitar a hierarquia e ter uma atuação independente.
Ao chegar ao sertão baiano, o general Arthur Oscar Andrade Guimarães, chefe da quarta e última campanha contra os sertanejos, determinou que, só com sua ordem, os feridos poderiam sair do campo de batalha, diminuindo o poder de decisão do médico.
Fuga do inferno
Entrar na lista de “sahídas” do doutor chefe do hospital era uma forma possível de fugir legalmente do inferno e escapar de um Exército com poucos “víveres” e “gêneros alimentícios”, do paludismo, da varíola e de oficiais muitas vezes confusos e despreparados para uma guerra sob o sol escaldante do sertão.
Cartas do médico a Arthur Oscar solicitando a remoção de praças e oficiais tornaram-se diárias, assim como as mortes e os ferimentos graves.
“Passo às vossas mãos a inclusão de praças pertencentes à Divisão sob vosso digno commando que necessitam ser enviadas para a capital por não poderem ter aqui neste acampamento o tratamento que se torna necessário e urgente”, escreveu o médico em 26 de março de 1897.
Uma estimativa oficial de baixas feitas anos depois sugeriu que o Exército “perdeu” em combate 15 mil homens, entre mortos, feridos, “extraviados” e “vitimados”. O número arredondado pode estar longe da realidade histórica. Mas os relatórios parciais do Serviço Sanitário das Forças em Operação em Canudos apontam mortes diárias e números elevados de entradas de feridos nas barracas médicas. Só entre os dias 12 e 14 de agosto de 1897 o Hospital de Sangue registrou a morte de dois praças e o atendimento a 125 militares, entre soldados e oficiais. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.