Variedades

Ocupação na cidade celebra 20 anos de carreira da bailarina Marta Soares

Marta Soares começou a dançar tarde, aos 20 anos. Foi quando descobriu a arte por meio da qual poderia revelar o que sentia, o que estava embaixo de sua pele. Mas quando se tem uma alma inquieta e o desejo de expressar com tamanha agudeza o invisível dentro de si, não há linguagem já existente que dê conta de tamanha complexidade. O que resta é criar o próprio vocabulário para o corpo, partindo do zero. Um trabalho radical, profundo. É o que a bailarina e coreógrafa paulista tem feito. Nesta quinta, 3, a Oficina Cultural Oswald de Andrade, na capital, recebe a ocupação que celebra 20 anos de carreira de Marta e exibe quatro de seus trabalhos mais importantes.

As obras de Marta são mais performáticas, dialogando muito com as artes plásticas e o audiovisual. Em Vestígios (2010), que abre o programa, Marta surge imóvel, soterrada por areia, sendo, aos poucos, “exumada”. Em seguida, no fim de março e em abril, será apresentado O Banho (2004), em que ela se movimenta dentro de uma banheira cheia de água. Deslocamentos (2014-2015) segue a programação, em maio. A coreógrafa não dança o trabalho, no qual os corpos de seis bailarinas se unem por meio do figurino, formando figuras sem classificação. O solo Les Poupées (1996) encerra a temporada, em junho. Ao contrário das outras, há mais dança nessa obra. “Pensei nessa organização que é como se eu fosse retomando a dança no meu corpo. É quase uma reconstrução até a dança, que tinha se tornado mais performance”, afirma Marta.

Les Poupées revela um tema que se tornou constante na pesquisa de Marta: a impossibilidade de dançar – embora, segundo ela, não seja algo racional ou um pré-requisito. No solo, seus movimentos são restritos por figurinos. Há um questionamento sobre as categorizações do corpo (o dentro e o fora, homem e mulher, o vivo e o morto, figura e fundo), há um “borramento” desses limites, como a coreógrafa explica. Os conceitos estão nas obras do escritor e pensador francês Georges Bataille (1897-1962) e do fotógrafo surrealista alemão Hans Bellmer (1902-1975), talvez as duas maiores influências de Marta, junto do butô, a dança japonesa criada após a 2.ª Guerra.

Controverso, Bellmer ficou famoso ao criar, nos anos 1930, esculturas grotescas de corpos femininos. Com suas bonecas – mutiladas e erotizadas -, o artista se opunha à opressão do nazismo na Alemanha. “Quando olhei as bonecas, achei que era daquela maneira que me sentia. Bellmer queria tornar visível o que estava dentro. É o que ele chama de inconsciente físico, os caminhos que o desejo percorre no corpo. São invisíveis. Eu me identifiquei com isso por ter crescido durante a ditadura, em uma sociedade patriarcal. Não tinha muito espaço para entrar em contato com os desejos e sentimentos. É como se eu olhasse para aquelas imagens e me revelassem algo que sentia, mas não podia expressar. Em um momento histórico diferente, já nos anos 1960, 1970, algo daquelas bonecas mostrou o meu dentro”, diz. “A dança foi a minha maneira de sobrevivência emocional.”

Radical

As pesquisas de Marta levam anos para serem realizadas. Principalmente em relação ao método de criação, a coreógrafa é radical. Com frequência atinge a exaustão física e metal. Embrenha-se de tal modo no trabalho que em O Banho, por exemplo, acredita que se fundiu a Sebastiana de Melo Freire (1877-1961). Conhecida como Dona Yayá, a única herdeira da fortuna de uma tradicional família paulista foi diagnosticada com uma doença mental no fim dos anos 1910. Ficou enclausurada por quatro décadas em sua casa, transformada em hospital psiquiátrico privado, na Bela Vista.

“Fui à casa da Dona Yayá por seis meses para captar as imagens. Depois, passei a trabalhar na banheira e também filmei meu corpo. Foram 120 horas (de filmagens). Fui trabalhar na banheira com essas imagens que o (médico Jean-Martin) Charcot fotografou dos corpos histéricos. A banheira era dura, eu ficava na água ensaiando por muitas horas, de madrugada.”

Para desenvolver Vestígios, Marta visitou durante dois anos os sambaquis, cemitérios indígenas pré-históricos em Santa Catarina. A transitoriedade da paisagem foi um dos desafios nesse caso. “Eu ia e o esqueleto estava lá. Voltava e não estava mais, porque tinham mexido, destruído. Então, eu falava: O que faço agora?”, conta. “Não tem muita gente que trabalha assim. Depois de Deslocamentos, talvez mude o método.”

Marta passou nove anos no exterior. Em Londres, concluiu o curso no Laban Centre for Movement and Dance. Em seguida, em NY, passou pelo Laban/Bartenieff Institute of Movement Studies, frequentou os estúdios de importantes coreógrafos e concluiu o bacharelado em Artes pela State University of New York. Nos EUA, sentiu o peso de ter começado a dançar tarde e de, muitas vezes, ter se achado “invisível” em meio a tantas pessoas que dominavam diferentes técnicas.

No início dos anos 1990, Marta ganhou uma bolsa para estudar butô no Japão, com Kazuo Ohno (1906-2010). Assim como sua arte, a coreógrafa acredita que a dança japonesa, desenvolvida no pós-guerra, rompe com o padrão para criar uma linguagem que seja capaz de expressar as particularidades de sua vivência. “Faz sentido, de repente, sentir que não vai dançar daquela maneira (as técnicas já existentes), apesar de ter estudado tudo aquilo. Porque não condiz com a sua subjetividade, com as suas cicatrizes internas. Por isso, eles criaram o butô. E eu, sozinha, vou criando as minhas coisas, que têm essa lógica do zero, do impossível, por não me sentir eficiente, segundo os padrões. Você não vai dançar da maneira que aprendeu porque não condiz com o seu dentro.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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