Legenda: Mina de ouro desativada de Mariana/MG. Ano: 2012. Acervo: AAPAH/Bruno Leite de Carvalho.
Em muitos livros sobre Guarulhos se faz menção ao ouro da nossa cidade. Sua localidade, seu processo ou sua importância (relativa, determinante, etc.) A verdade é que o ouro como em qualquer comunidade, grupo ou civilização da história foi sempre cercado de mistérios, como não se lembrar das viagens de Marco Polo ou o desconhecido paraíso do Novo Mundo, imagens e imaginários que fez a cabeça dos europeus do século XIV e XV. De outro lado, o ouro também pode ser objeto de sangue e lutas, como por exemplo, na Serra Pelada ou na antiga Vila Rica do Brasil colonial. Em menor grau, Guarulhos, por meio de insistentes escritores, pensadores e estudiosos tentaram se colocar no mapa do processo de exploração aurífera. Muitas vezes, forçando a barra e carregando na tinta.
Os objetivos deste artigo é debater o ouro em Guarulhos, assim como o uso do “ciclo” como conceito categórico para explicar a história de “longa duração”, como diria Fernand Braudel, de nossa cidade. Pretendemos também lançar questionamentos sobre a influência desta análise na formação de certa historiografia guarulhense.
Em certo momento, afirma Adolfo Noronha, um dos principais memorialistas de Guarulhos, no livro Guarulhos Cidade Símbolo, “do ciclo do ouro, da colaboração do negro e do índio nos trabalhos agrícolas, nas minerações auríferas e nas entradas ao sertão bruto, a história guarulhense nos dá algumas informações preciosas” (NORONHA, 1960).
A discussão sobre os “ciclos” para definir etapas ou dividir épocas na história não é algo novo. De acordo com as teorias cíclicas da História, o progresso das sociedades humanas desenvolve-se de acordo com grandes ciclos que se repetem ao longo dos tempos. A explicação cíclica da história teve origem nos pensadores da Grécia Antiga, dos quais Heródoto (484-424 a.C.) e Tucídides (460-404 a.C.) são os expoentes bem conhecidos. A ação humana como vetor desses ciclos é formalizada no início do humanismo, no século XV. A teoria de ciclos é muito utilizada também na economia com forte lastro no Brasil.
Em 1926, o economista russo Nikolai Kondratiev apresentou a ideia de ondas longas da conjuntura, a hipótese da existência de ciclos longos na dinâmica do capitalismo mundial, com base na análise de séries cronológicas de preços no atacado, de 1790 a 1920, nos Estados Unidos e no Reino Unido. Nessa visão, os ciclos sucedem-se marcando o processo de expansão, com outro de decadência, apesar de ser concebida a ideia de concomitância. No Brasil, outro importante analista usa a tese dos ciclos para explicar o processo de formação do Brasil: Celso Furtado, em Formação econômica do Brasil. Para ele, podemos pensar o desenvolvimento do Brasil na sucessão de ciclos, o do pau-brasil, o do açúcar, o da mineração, o do café e o da indústria. Apesar de refutar que fosse algo estanque, a compreensão é que para surgir, o anterior deveria ser superado.
A palavra “Ciclo” foi adotada pela historiografia guarulhense quase que de forma unanime. Adolfo Noronha, João Ranali e Gasparino Romão, usavam abertamente. Oficialmente o conceito também é usado em documentos oficiais e estudos de pesquisa. É inclusive nome de um possível parque para a preservação da história local, o Geoparque Ciclo do Ouro em Guarulhos.
Possivelmente influenciado pela teoria de Ciclos de Kondratiev ou sob o impacto de Celso Furtado, Noronha aplicou a ideia de ciclos para analisar a história de Guarulhos, fundamentando na questão do ouro. Analisando a documentação em torno da entrega de sesmarias para exploração das bandeiras na aldeia e a conhecida ausência de outras culturas com potencial econômico no planalto paulista, Noronha afirma que “Era natural, pois que a pesquisa do metal precioso, em Guarulhos se iniciasse, como realmente aconteceu, logo após a sua fundação” (NORONHA, 1960).
Assim como os topônimos que indicam a existência de exploração de ouro em Guarulhos (Lavras, Catas Velhas, etc.), Noronha se fundamenta em um artigo escrito pelo jornalista Manoel Rodrigues Ferreira, publicado em 15 de abril de 1958 pelo jornal A Gazeta, em que é apontada a existência de uma gama documental que enfoca a exploração do ouro em Guarulhos, precisamente na região das Lavras. Tais documentos datam de 1590, 1661 e 1741, tratando exclusivamente de aspectos conjunturais em relação à exploração do ouro. Por conjunturais entendam-se as cartas de sesmarias, a construção de caminhos e o conserto da Estrada de Bonsucesso, devido à ação de porcos, respectivamente. Concluindo sobre elementos pouco conclusivos e que tergiversam sobre a exploração do ouro em Guarulhos, Noronha afirmaria em seu livro a sentença que influencia toda uma compreensão do processo de formação da cidade.
Como se vê, não foi apenas a região aurífera que atraiu o colonizador. No entanto, é compreensível que o aparecimento do ouro tenha despertado e generalizado um maior interesse por Guarulhos. Os trabalhos de mineração devem ter durado cerca de dois séculos (O XVII e o XVIII), não havendo qualquer notícia de extração de ouro no século passado (NORONHA, 1960: 37).
Se de um lado não se pode negar que houve a exploração de ouro, e as reminiscências da exploração como dutos, valas e paredes de taipa indicam isso, assim como as cartas de sesmarias encontradas na Câmara de São Paulo, por outro, a fragmentação e quase ausência de outros elementos corroboram os limites e a incipiente exploração de ouro em Guarulhos.
Podemos ainda dizer que a análise dos ciclos, desse modo, não responde às singularidades locais, mas apenas uma tentativa de homogeneizar a visão da formação de Guarulhos atrelada à capital de São Paulo e sua relação na estrutura colonial.
Mesmo com a possibilidade do ouro, compreendemos que a ideia de ciclo é muito distante da realidade em que a exploração de metais preciosos se estabeleceu em Guarulhos. A de se revelar, ainda, que parte da documentação setecentista usada por Noronha para justificar a mineração guarulhense indica as áreas auríferas de Ouro Preto como parte de São Paulo, “inflando” de certa forma os números atribuídos a cidade paulista.
Em suma, o mito do “ciclo” do ouro da cidade obscureceu outros elementos importantes para o estudo de formação de Guarulhos, tais como a presença indígena e negra. Ensaiou sob um conceito, generalizar a história colonial de Guarulhos, ainda hoje pouco compreendida. Em busca de um passado mítico e reluzente que fosse luminoso como o ouro, parte dos próceres da historiografia de Guarulhos ignoraram por completo outros componentes da nossa história colonial.
[1][1]Historiador, responsável pelo Núcleo de Patrimônio Cultural da AAPAH, coautor dos livros “Cecap Guarulhos – Histórias, Identidades e Memórias”, “Guia Histórico Cultural de Logradouros – Lugares e Memórias de Guarulhos” e “Signos e Significados em Guarulhos – Identidade – Urbanização – Exclusão”.