Em Cannes, no ano passado ou, para falar a verdade, em qualquer dos anteriores, o diretor artístico Thierry Frémaux irritava-se com os pedidos de prognósticos, feitos pelos jornalistas. “Prognóstico é coisa para turfistas, não para o selecionador de Cannes.” Mas ele deixou escapar que estava muito feliz de poder apresentar, em sessão especial, um nouveau venu (estreante) no maior festival do mundo. O diretor em questão era (é) Samuel Benchetrit e o filme, Asphalte, que estreou na quinta, 3, no Brasil, rebatizado como Fique Comigo. É um filme coral, contando várias histórias de personagens cujas vidas se unem num prédio da periferia, ou mais exatamente, nas escadarias do prédio, já que o elevador não funciona e força os vizinhos a romperem o isolamento, encontrando-se nas escadas.
Benchetrit sabe do que está falando. Ele próprio vem da banlieue, como dizem os franceses, e conhece muito bem esses prédios malconservados, em que os elevadores não funcionam. Numa conversa por telefone, de Paris, o diretor, também autor do roteiro, disse que Fique Comigo nasceu do seu desejo de dar um testemunho. “Quero falar sobre o estado do mundo a partir da periferia, retratando seu abandono e isolamento, mas, acima de tudo, como alguém que veio daí, quero mostrar que existe, nessa espécie de gueto, uma certa poesia e humor. A periferia não é só droga, violência, exclusão social. É uma facilidade à qual o cinema se entrega com frequência e que somente acirra o preconceito.”
Havia, na seleção de Cannes do ano passado, outro filme francês sobre a periferia. Dheepan, de Jacques Audiard, mostrava a vida de um imigrante do Sri Lanka que formava uma falsa família para obter asilo na França. Ia parar num conjunto de prédios, em plena guerra de gangues. Nesse quadro violento, a falsa família estreita seus laços, cria relações verdadeiras. O júri presidido pelos irmãos Coen outorgou a Dheepan a Palma de Ouro, mas a bilheteria do filme na França não correspondeu à expectativa. Campeão de indicações, Dheepan também não ganhou nada no César, o Oscar francês. Fique Comigo, pelo contrário, ganhou ótimas críticas que ajudaram a alavancar as bilheteria. Sem ter sido um estouro, foi muito bem.
“Meus dois filmes precedentes, Un Voyage e Chez Ciro, não conseguiram encontrar seu público, o que terminou sendo traumático para mim”, confessa o diretor. “Fiquei particularmente desapontado com o fracasso de Chez Ciro porque foi um filme que adorei fazer, e imaginava, ingenuamente, que o público gostaria de vê-lo. Estava cheio de dúvidas, o sucesso de Fique Comigo me reconfortou. Um filme desses, decalé, encontrar seu público é algo muito positivo.” E o que, exatamente, significa esse decalé? “Não é exatamente um filme realista, como a maioria dos que abordam a periferia. Possuiu uma abertura para a fantasia e o sonho que me atrai muito. Estava na essência do projeto. A história foi me saindo desse jeito e, cada vez mais, eu me envolvia com esses personagens.”
Um garoto que se sente negligenciado pelos pais, uma atriz, um homem depressivo, uma enfermeira da noite, uma dama do Magreb cujo filho está na cadeia. E um astronauta cuja nave pousa justamente no terreno anexo ao prédio – e que o diretor filma como se fosse a paisagem da Lua. Como Benchetrit conseguiu escrever (e filmar) personagens tão díspares? “Alguns deles, como a dama do Magreb, eu conheço bem. Outros nasceram da imaginação, como o astronauta. Nunca conheci um (risos).” Em Cannes, principalmente as publicações norte-americanas que circulam no festival – Variety e The Hollywood Reporter -, aproximaram o relato coral de Benchetrit do de Robert Altman em Short Cuts – Cenas da Vida, adaptado de histórias curtas de Raymond Carver.
“Acho que não tem nada a ver. Não creio que Short Cuts seja um grande Altman e, de qualquer maneira, nossos filmes diferem porque são muito embasados na realidade física e geográfica. Os personagens dele pertencem ao sul da Califórnia, os meus expressam a França atual. Com algum discernimento, creio que se podem ver os sintomas do mal-estar da França pós-atentados, e a tentativa de assalto ao poder da direita.” Do elenco participam Isabelle Huppert, Gustave Kervern, Valeria Bruni-Tedeschi, Michael Pitt e o filho do diretor, Jules. “Não escrevi o papel para ele, pelo menos não conscientemente, mas o próprio Jules leu o roteiro e disse que poderia fazer Charly. Isabelle aceitou logo. É maravilhoso ver como ela cria Jeanne sem vesti-la. Isabelle mantém sempre uma distância. É o seu jeito, e é sempre maravilhosa. Vale para ela mesma. Ela é uma estrela, mas não se comporta como tal. Acharia ridículo. Seu humor a preserva de cair no narcisismo.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.