Variedades

Miriam Mehler recorda história de Dona Yayá, aristocrata tida como louca

“Quando alguém fala para mim que preferia a ditadura militar, eu bato na madeira três vezes”, diz a atriz Miriam Mehler, enquanto repete o movimento no banco em que está sentada. Ao fim do ensaio de Fora do Mundo, no Teatro Sérgio Cardoso, ela se acomoda para lembrar de uma noite em 1974, quando estreou Bonitinha, Mas Ordinária no Teatro Paiol. A censura tinha autorizado a montagem do espetáculo de Nelson Rodrigues com a condição de que fossem cumpridos 30 cortes. Miriam, que também produzia a peça dirigida por Antunes Filho, estava em Brasília conduzindo a negociação. “Comuniquei os cortes por telefone para que eles ensaiassem enquanto eu voltava.” Já passava das 22h, quando, desiludida, Miriam imaginava que não haveria mais ninguém esperando. A montagem teve casa cheia e os aplausos foram dignos de “astros de Hollywood”. “O público sentia na pele o que estávamos passado e nos apoiava o tempo todo.”

Aos 80 anos, a atriz encara, a partir desta sexta, 1º, uma personagem tão viva quanto suas lembranças. Em Fora do Mundo, Miriam vive a história de Sebastiana de Mello Freire, a Dona Yayá, uma jovem que foi trancafiada por 42 anos em sua residência na Rua Major Diogo, na Bela Vista. Tratada como louca, a aristocrata morreu em 1961 sem herdeiros. Toda sua fortuna, avaliada na época em US$ 4 milhões, foi transferida para a Universidade de São Paulo. Miriam já tinha conhecimento da “velha louca”, como diziam. Em 1958, a atriz cumpria temporada com Um Panorama Visto da Ponte, no Teatro Brasileiro de Comédia, naquela mesma rua. “As pessoas ficavam olhando para as janelas da mansão e diziam que dava para ouvir os gritos.”

O drama verídico de Fora do Mundo foi recuperado por Analy Alvarez que conquistou, em 2008, o segundo lugar do prêmio italiano de dramaturgia feminina La Scritura Dela Diferenza. “Um dia, encontrei um livro sobre a arquitetura da mansão e fiquei fascinada com o que aconteceu entre aquelas paredes.” Na montagem, Dona Yayá está em seu último dia de vida. Por causa dos delírios e dos medicamentos administrados, a mulher passa a ouvir vozes dos pais e irmãos mortos.

No palco, a personagem de Miriam também tem um reencontro com sua versão jovem, interpretada por Mariana Blanski, em uma tentativa de passar a limpo todos os anos de sofrimento. Ainda assim, Miriam defende que Dona Yayá teve grandes momentos de lucidez. “Aquela mulher estava muito à frente de seu tempo. Ela recusava se casar e era vista dirigindo o próprio carro. Naquela época era um absurdo!”

Miriam reflete que tudo isso era muito parecido quando ela própria decidiu ser atriz. Nascida na Espanha, foi trazida ao Brasil pelos pais quando tinha dois anos. “Eles tinham uma vida muito cultural: visitavam museus e iam a espetáculos regularmente. No dia em que eu disse que queria ser atriz, meu pai respondeu: Filha minha não é prostituta.”

O embate durou muitos anos. Ele até exigiu que a filha mudasse de sobrenome para não envergonhar a família. A jovem recusou e deu sua resposta enquanto estava em temporada no Rio de Janeiro. “Recebi uma crítica muito negativa. Peguei a página do jornal, coloquei no correio e enviei a matéria para meu pai.”

A falta de apoio para praticar a profissão não era luxo de sua família. Miriam conta que, apesar da atual escassez de recursos para montar espetáculos, nos anos 1960, não havia absolutamente nenhum tipo de patrocínio. “O ator precisava ralar. Trabalhamos muito no Teatro Oficina para arrecadar dinheiro”, ela recorda de Pequenos Burgueses e Andorra, uma de suas peças preferidas, em que contracenou com grandes parceiros, como Renato Borghi e Etty Fraser, a “Titinha”. “Existem amigos que vêm e vão. Mas os dois são os que ficarão para sempre. A Etty me liga todos os dias para saber como estou. Daqui a pouco, ela já vai ligar.”

Ao conquistar a solidez no palco, Miriam também ganhou respeito da família. Com o espetáculo À Flor da Pele, de Consuelo de Castro, fundou em 1969 o Teatro Paiol, ao lado do marido Perry Salles. Mais tarde, o grande Abelardo e Heloísa, com mais de 20 atores no palco, cumpriu temporada por indicação do pai da atriz. “Ele tinha visto a peça na Europa e me colocou em contato com a produção.”

E, quando pensa no tempo presente, Miriam não demonstra receio. É certo que a época não a mesma e que já não é possível ficar em temporada de terça a domingo – com duas sessões no fim de semana, ela acrescenta -, mas também não há motivos para parar. “Eu poderia me aposentar, não haveria nenhum problema.” Mas, quando cita a temporada de Fora do Mundo, Miriam demonstra que o tempo está cheio de possibilidades e que ela não quer desperdiçar nenhum momento. “Parece bobagem, e todo mundo fala isso, mas pode escrever: se eu puder, quero morrer no palco.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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