“Quantos vão desmaiar hoje?” Essa era a inusitada aposta que a equipe do Teatro da Vertigem fazia antes de mais uma noite de O Livro de Jó. Se, em 2014, o Hospital Umberto Primo ostentou uma exposição de artistas brasileiros, em 1995, quando a peça estreou no espaço, o prédio iniciava um ciclo de quase duas décadas de abandono. Desativado em 1993, o complexo foi sondado pela grupo de Antonio Araújo para receber a encenação, que retratava a miséria do homem na figura da personagem bíblica, vivida na carne por Matheus Nachtergaele. De cabeça para baixo, o ator ficava dependurado em um pau de arara e do seu corpo, uma mistura de óleo e tinta vermelha pingava constantemente. Essa era a receita dos desmaios. A cada sessão, pelo horror, duas ou três pessoas precisavam deixar o espetáculo, espontaneamente ou carregadas. A recepção da montagem projetou o Vertigem nas alturas – que havia estreado como grupo com Paraíso Perdido – e marcou de maneira permanente a carreira de Nachtergaele.
Em Processo de Conscerto do Desejo, a intenção não será provocar desmaios, mas a vontade de se sujar com misturas contínuas. “Eu me pinto com tinta amarela. Para iluminar, lançar um pouco de luz em tudo isso.” Assim foi na lama de Woyzeck, montado em 1990, pela recém-formada Cibele Forjaz e com dramaturgia de Araújo, nos tempos da Escola de Arte Dramática. “Tem a ver com as nossas origens, com o que somos”, conta o ator.
A projeção de O Livro de Jó o levou a contracenar com Fernanda Montenegro, Fernanda Torres e Celso Frateschi em Da Gaivota, em 1998, mesmo ano do sucesso cinematográfico de Central do Brasil. Dois anos depois, Nachtergaele ainda dividiu o palco com Paulo José, em A Controvérsia. “Aos poucos, fui imprimindo um estilo no meu trabalho. Tanto no teatro, como em outros projetos, sempre fui chamado para personagens com os quais eu me identificava, de alguma forma.” Em 2012, sua última passagem pelos palcos significou também um retorno. A lama de George Büchner estava lá, agora em Woyzeck, O Brasileiro, personagem convertido de soldado a operário de uma olaria na dramaturgia de Fernando Bonassi.
Mas nada disso se assemelha “ao melhor texto que ele já leu”, ele ri, em referência à poesia de sua mãe. “Apesar de toda a afetividade que tenho pelos escritos, eles também retratam uma jovem moderna para aquela época, com pensamentos protofeministas e visão política do que é ser mulher”, conta. “E uma boa dose de tristeza, como todo grande poeta”, acrescenta. “Tem poemas de amor, de desilusão amorosa, alguns que parecem haicais.”
Para acompanhar os versos, o ator também inclui canções de músicos e compositores que sua mãe apreciava, além de algumas que eram executadas pelo seu pai, como Paulinho da Viola, Zé Kéti e Bach. “No início da Traditional Jazz Band, em 1964, papai tocava banjo. Ele foi um dos fundadores do grupo, mas, com a morte de mamãe, foi se desiludindo até sair da formação.”
A paixão por música pegou Nachtergaele por outro lado. Ele conta que até se esforçou nas aulas de violão, sem sucesso. “Lá em casa, eu era o cantor oficial de papai”, defende. A montagem está há quase um ano na estrada e seu pai ainda não assistiu. A surpresa é que ele confirmou presença na temporada em São Paulo. Nachtergaele conta que espera o momento desde a concepção do projeto. “Acredito que ele vai se emocionar bastante. Muitos textos parecem ter sido destinados a ele. Talvez para o amor que ela estivesse vivendo com ele. Segundo me diziam, eles se amavam muito.”
Durante muitos anos, seu pai sentava com a viola e anunciava ao filho: “Sua mãe gostava dessa música”. “Era como um segredo, só nosso”, Nachtergaele diz. Não será mais. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.