Quando era pequena, Fernanda Susanna, estudante de Medicina, hoje com 19 anos, disputava com as irmãs trigêmeas o privilégio de sentar ao lado do pai, Remo Susanna, na cadeirinha que conduzia ao início da pista de ski no Colorado. Oftalmologista famoso, um dos maiores especialistas em glaucoma no mundo, o doutor Remo, a pedido das meninas, sempre contava a história de um leãozinho desajeitado, filho de rei que, por não ter herdado a força do pai, decide fugir para escapar dos bichos hostis. Quem orienta o filhote de leão na floresta cheia de perigos é uma coruja, ensinando-o a sobreviver para assumir o posto do pai.
O livro Leãozinho, que traz essa história, será lançado nesta quarta, 4, às 18h30, na Livraria da Vila do Shopping JK Iguatemi (Av. Pres. Juscelino Kubitschek, 2.041). Susanna escreveu a obra, para crianças, com base na história contada pelo pai, fazendo dela uma parábola que se encaixa de maneira perturbadora à turbulência política do Brasil atual. É notável a correspondência analógica entre o País e as atribulações do felino do livro, que deve derrotar inimigos e escolher bem os seus ministros para governar seu território. “Essa metáfora, porém, não foi intencional”, comenta a autora, que escreveu o livro bem antes da crise que culminou no pedido de impeachment da presidente. Ela cursava o colegial, quando esboçou a obra, que traz ilustrações da jovem paulistana Anita Prades.
O livro, publicado pela editora Seringueira com patrocínio do Itaú Cultural, foi escrito como um presente para o pai. Na casa da família Susanna, é costume que as meninas comemorem o Dia dos Pais oferecendo um desenho ou uma lembrança por escrito. Fernanda concluiu, a exemplo do escritor argentino Roberto Arlt (1900-1942), que jamais produziria algo tão belo como uma nuvem rosada, mas poderia deixar registrada a história ouvida tantas vezes, cujo principal ensinamento ela resume numa só palavra: foco. “De todas as lições que aprendi com meu pai, a principal é que precisamos manter o foco para alcançar nosso objetivo”, referindo-se à passagem em que o seu leãozinho, faminto, caça lebres para sobreviver na floresta, errando invariavelmente a mira.
“Relacionava a história com a minha experiência e a dos amigos, mas não pretendia construir uma parábola, ainda que identifique alguns elementos da vida real, como a falta de solidariedade e o jogo do vale-tudo num momento de crise econômica como o atual, em que não se visa ao bem comum, mas o benefício pessoal.” Fernanda sempre gostou de ler e escrever. Seu trabalho de conclusão de curso revela sua inclinação para temas complexos: ela escolheu A Utopia, de Thomas More (1475-1535), livro que completa 500 anos, sobre uma república da qual foram expurgados o fanatismo religioso e a intolerância, obrigando o parlamento a trabalhar para o bem do povo.
“Precisamos de uma utopia no século 21”, analisa Fernanda, assumindo que sua geração ainda tateia no escuro em busca da sociedade alternativa sonhada pelo pensador inglês. “Não diria que nós, os jovens da minha geração, somos conformistas, mas espero que o conservadorismo não sufoque as minorias.” Ela já leu muito os autores de distopias (George Orwell), os protoexistencialistas russos (Dostoievski) e chegou a ensaiar uma peça do inglês Martin Crimp, Attempts on Her Life, para uma encenação escolar do dramaturgo, que não é dos autores mais otimistas do teatro – ambicioso, ele sintetiza nesse texto temas do mundo contemporâneo, da incomunicabilidade ao terrorismo. “Não cheguei à estreia”, conta. No entanto, o teatro e balé ainda são suas paixões – ela estudou na Royal Academy e gosta de dança experimental, como o tanztheater da alemã Pina Bausch (1940-2009).
A escritora, como se vê, tem inclinação para autores densos. Entre os filmes que marcaram a temporada passada, ela aponta o polonês Ida, de Pawel Pawlikowski, como um dos seus favoritos. Em tempo: Ida se passa em 1962 e acompanha a trajetória de uma órfã criada por freiras, que descobre ter uma tia sobrevivente da guerra. O tema do pertencimento é muito caro a duas autoras a quem Fernanda presta tributo, Clarice Lispector e Virginia Woolf. Ela ainda não sabe se seguirá seus passos. Literatura é dom natural, mas a jovem escritora se mantém cautelosa sobre o futuro: “Não pretendo parar de escrever”, diz. “Por outro lado, estou gostando muito de Medicina.” Tudo bem. Chekhov e Arthur Schnitzler, para ficar em dois exemplos, também eram médicos. E deixaram obras-primas. Pode ser que Fernanda Susanna também faça isso.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.