Dois senhores de idade vivem numa clínica de repouso. Em comum, o mesmo passado: ambos sobreviveram ao campo de extermínio de Auschwitz, durante a 2ª Guerra Mundial. Eles saíram vivos, mas não suas famílias, que sucumbiram no campo. Setenta anos depois, desejam encontrar o oficial da SS responsável pelos crimes. O tema de Memórias Secretas, de Atom Egoyan, é este: vingança. Ou justiça, se preferirem.
Egoyan manipula com habilidade o ambiente geriátrico para encaminhar o seu drama. Conta com dois grandes atores. Martin Landau interpreta Max Zucker e Christopher Plummer faz Zev. Eles padecem de males distintos.
Max vive preso a uma cadeira de rodas e respira com ajuda de um balão de oxigênio. Zev locomove-se e parece bem de saúde, mas sofre de Alzheimer e não consegue recordar de quase nada. Nem mesmo de que sua mulher, Ruth, com quem esteve casado a vida inteira, morrera havia uma semana. Um tem a mente intacta e outro o corpo que ainda funciona.
Unidos, podem acertar contas com o passado. Mas como Zev não retém na memória quase mais nada, Max escreve um plano detalhado, passo a passo, para que ele chegue ao carrasco, que mudou de nome para Rudy Kulander. O problema é que existem quatro homônimos. Como saber qual deles é o antigo guarda de Auschwitz?
Dito isso, é preciso reconhecer que a arquitetura do filme repousa, quase inteira, sobre o grande trabalho de Plummer. Ele é quem vai a campo e, com todas as limitações físicas e mentais, procura cumprir a missão. Foge da instituição e passa a percorrer o país atrás do alvo.
Memórias Secretas é, assim, tanto um road movie quanto uma história de investigação.
Toda a graça está disposta na fragilidade do “detetive”. A bordo de um trem, Zev se esquece de onde está indo e com que finalidade. Perde-se pelo caminho, compra uma arma que não sabe usar, etc. É um trapalhão, mas com o qual o espectador deve simpatizar, com seu ar desamparado e aspecto de bom vovô.
Como pano de fundo, a memória do holocausto. E a discussão, em filigrana, da proposta de Simon Wiesenthal, a de que nenhum carrasco nazista deveria ficar sem julgamento. No entanto, a aventura de Zev, comandada por Max, parece muito mais um ato de vingança individual do que de justiça. Claro que existe dificuldade em separar as duas coisas e existem cínicos que entendem a justiça como nada menos que uma vingança social controlada pelas leis e costumes de cada época. Por isso, execuções públicas e suplícios foram, em outros tempos, atos legais do Estado. De qualquer forma, a dupla parece mais preocupada em usar a Lei de Talião contra alguém que teria destruído suas famílias do que buscar alguma forma civilizada de reparação.
Existe uma assimetria entre os dois. Max é mais cerebral e estrutura a ação de forma lógica, como o espectador verá. Zev parece o tempo todo agir sem grande convicção, tendo o ar de quem está sendo conduzido, embora, com todos os percalços, procure cumprir a missão de forma exemplar.
Nem tudo no filme parece convincente. A longa sequência em que um policial canadense (Dean Norris), filho de um alemão, exibe suas relíquias do passado nazista, parece toda artificial, quando não caricata. Mesmo as viradas de roteiro, e uma em especial, não parecem de todo verossímeis. As quebras de expectativa, se dão originalidade à história, também fazem sentir um retrogosto de artificialidade. Ainda sim, e com estas restrições, o thriller funciona.
E funciona porque, além da presença luminosa de Plummer, Egoyan, digam o que disserem, sabe filmar. Quer dizer, é capaz de ordenar uma narrativa com começo, meio e fim (nesta ordem), dar-lhe dinâmica e ritmo, e prender o espectador em sua poltrona para que seja cúmplice da história.
Memórias Secretas não é o melhor filme de Egoyan. É superado por títulos como Exótica, Calendário e, acima deles, por O Doce Amanhã, seu melhor trabalho. Esse armênio, radicado no Canadá, é ligado a temas internacionais, até pela questão da origem. Calendário se passa na Armênia, assim como Ararat. Neste Memórias Secretas, há Estados Unidos e Canadá, mas os personagens são guiados, e às vezes teleguiados, por laços estabelecidos com a Alemanha nazista e toda a tragédia europeia da metade do século 20. Esse, digamos assim, internacionalismo da violência e do ódio é o plano sobre o qual se sustenta a trama de Memórias Secretas.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.