Independência – ideológica, artística – é a palavra que melhor define o pintor carioca Eduardo Sued, que completa 91 anos em plena atividade, inaugurando na quarta-feira, 8, uma exposição na Galeria Raquel Arnaud, com 12 telas recentes. Ao deixar a França e voltar ao Brasil, nos anos 1950, ele se manteve independente e distante das discussões entre concretos paulistas e neoconcretos cariocas sobre as razões emancipatórias dos últimos, seguindo o próprio caminho. Nos anos 1960 não se submeteu à nova ordem figurativa. Nos anos 1970, passou ao largo da ditadura da arte conceitual. Nos anos 1980, não se entregou ao tsunami neoxpressionista que dominou o panorama artístico mundial. Sued, enfim, manteve-se fiel ao projeto moderno, como um Habermas dos pincéis a defender a racionalidade comunicativa.
Sued, que o crítico Ronaldo Brito, curador da sua exposição, define como “o grande desinibidor da pintura construtiva brasileira”, assume mesmo não acreditar que o projeto moderno tenha se esgotado. Assim como Habermas construiu sua defesa filosófica da modernidade com base num diálogo intersubjetivo, também Sued acredita que um pintor não deva se restringir a um programa construtivo ortodoxo, mas sim exercitar seu lado dialógico. A sua, afirma, é uma pintura de superfície, que rejeita a ilusão tridimensional mesmo que, nas mais recentes telas, uma linha diagonal possa eventualmente sugerir uma narrativa renascentista.
Não, essa pintura nada tem a ver com perspectiva renascentista ou o ordenamento ilusionista tridimensional do século 15. Essa linha diagonal, afirma Sued, “surgiu da planaridade bruta, da superfície que é o quase nada”. Claro, diante de suas telas é possível pensar na utilização do ouro por Giotto, esse elo entre Bizâncio e o Renascimento, que usava o precioso metal, incorruptível, para destacar a santidade de seus personagens. Sued, porém, usa o dourado com outro propósito. Há telas em que o embate entre a área dominada pelo negro e o território do ouro vai além da natureza física das cores. Vale lembrar que forma e cor estão amalgamadas em sua pintura.
Se Mira Schendel, num passado recente, retirou o ouro da tradição da pintura renascentista para tratar do dourado na modernidade, como signo da individuação no caótico, Sued usa o ouro um pouco à maneira de Matisse, não para afirmar uma hierarquia cromática, mas para estabelecer uma relação harmoniosa entre as cores que estruturem sua pintura. Há, claro, na pintura de Sued, citações ao ordenamento ortogonal de Mondrian, à concisão de Cézanne ou à fragmentação cubista de Picasso, mas elas, garante o pintor, “são apenas referências”. Aquele “passado”, conclui Sued, “existiu como base, mas hoje me sinto livre, cada vez mais livre, e já estou partindo para outro modelo em que a simplificação é tudo”.
Quando Sued fala em “simplificação” não significa trabalhar com dimensões menores ou renegar seus mestres. Desde os anos 1970, quando introduziu no Brasil uma escala pantagruélica, ajudando a tirar a pintura da prisão intimista a que estava confinada, o pintor optou pelo grande formato também para que o embate entre a rigidez geométrica da tradição construtiva e a expressão individual do pintor – reforçada por pinceladas turbulentas – se tornasse explícito. Essa nova guinada para a “simplificação” tende a radicalizar o conflito, maneira de o espírito rebelde desse senhor de 91 anos confrontar a ordem construtiva. Talvez seja conveniente lembrar que Sued trabalhou como desenhista de arquitetura do escritório de Niemeyer, entre 1950 e 1951, um ano depois de estudar pintura com o alemão Henrique Boese (1897-1982), um artista de formação expressionista (aluno de Käthe Kollwitz) hoje injustamente esquecido.
Também aluno (de gravura) do pintor gaúcho Iberê Camargo, Sued esclarece que não usa o negro no mesmo registro do mestre. “Admiro muito o Iberê, mas não uso o pigmento preto da mesma forma.” O que ele quer dizer é que não há a mesma polarização na superfície dinâmica de suas telas. O pigmento preto tem de se transformar em “negro” para transcender essa superfície. “É como se eu tentasse pintar uma piscina e nunca achasse o fundo”, compara o pintor. Essa busca pelos tons baixos e opacos está presente na melhor pintura da exposição, em que o azul da Prússia e o negro incorporam uma tragicidade de pintura espanhola, marcando menos a oposição cromática e mais o controle da forma e da luz.
Mesmo entre as pinturas com cores mais “estridentes”, para usar o adjetivo aplicado pelo curador aos vermelhos de Sued, o que ele procura parece ser uma harmonia matissiana que não pertence a este mundo. Sued diz que costuma “ouvir” cores. Não há razão para duvidar de sua sinestesia.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.