Em ciências humanas a palavra patrimônio ganha amplitude e se liga à ideia de memória, identidade e história. Assim, quando falamos em preservação dos patrimônios o intuito é preservar mais do que um objeto físico, uma riqueza material e sim símbolos e identidades. Além do entendimento sobre o objeto há a questão importante da discussão dos critérios usados para valorar este ou aquele objeto. Quem desenvolve essa norma de escolha? É sabido que dominadores e dominados atuam na história, porém são os primeiros que a escrevem. Sob a sua ótica e paradigmas. À luz dessa racionalidade é que são desenvolvidas avaliações do que preservar ou não preservar, provocando lacunas e distorções em qualquer estudo que se pretenda sério.
Como qualquer experiência humana, a memória histórica constitui uma das formas mais fortes e sutis da dominação e da legitimação do poder. Neste sentido, os grupos dominantes vencedores na história tentam impor a sua visão e a perpetuação de uma memória da dominação. Aos vencidos, restam apenas o esquecimento e a exclusão da história e da política preservacionista.
Para falar sobre um patrimônio que passou por esse processo na cidade, gostaria de citar um trecho da música Mestre-Sala dos Mares, de João Bosco e Aldir Blanc: “Salve o navegante negro, que tem por monumento as pedras pisadas no cais”. Esse trecho citado trata dos marinheiros negros que se revoltaram devido ao duro tratamento que recebiam dos seus superiores. Cansados de serem chibatados, insurgiram-se em 1910 naquilo que foi posteriormente chamado de Revolta da Chibata. Esses resistentes não tiveram monumento erguido por lutarem por uma condição mais justa no exército, como diz a letra da música, apenas as “pedras pisadas no cais”. Demonstra-se aí que monumentos são objetos de memória que ratificam o vencedor, mesmo que hoje se reconheça legítima a luta dos vencidos.
Felizmente há um resgate constante dessas histórias de resistência, o que impede o seu esquecimento. No entanto, para sentir-se cidadão, algo tão almejado pelos que assumem uma posição de liderança nesse estado de coisas, o indivíduo precisa ter um sentimento de pertencimento significativo no meio em que vive. Precisam de valorização da memória e identidade. Os monumentos resgatam constantemente esse sentimento, por meio do símbolo material. Em prejuízo a lei constitucional que determina que nossos patrimônios tenham cunho histórico e exaltem nossa composição étnica plural, ainda observamos, por parte de alguns setores sociais de Guarulhos, uma resistência à implantação deste modelo mundial. As indicações de patrimônios reforçam a memória dos vencedores, do elemento europeu e suas consecuções e cultura.
Para uma plena identificação e manutenção dos patrimônios culturais é preciso que toda a população nitidamente plural se identifique com esses símbolos, se reconheça neles e veja a sua memória sendo perpetuada por meio da educação, assim, a preservação será natural, quase automática.
No passado recente, por ocasião da remodelação do centro de Guarulhos, foi construída como monumento uma “mancha” negra no chão na Praça Conselheiro Crispiniano, para recuperar a história, memória da resistência e identidade dos pretos escravizados pertencentes às diversas irmandades que se reuniam na antiga igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Exatamente neste local, nos tempos coloniais, no primeiro quarto dos anos 1700, os pretos das irmandades construíram uma igreja, com muito esforço viveram sua fé, e, através de ajuda mútua, lutaram e sobreviveram ao duro período da iníqua escravidão.
Não bastando, após a abolição da escravidão, com o advento da república, sob o lema positivista de ordem e progresso e os alardeados princípios de igualdade, fraternidade e liberdade, sofreram a expropriação de sua identidade, memória, cultura e religião. Estratégia do processo de branqueamento (ideia de que a “raça branca” por ser superior iria sobrepujar a “raça negra” na miscigenação), arquitetado e executado pela elite republicana. A velha igreja que era referência da presença negra foi demolida, sendo uma das justificativas a expansão urbana em função de alargamento da Rua Dom Pedro II que, diga-se de passagem, não foi feita de modo pleno até hoje. Após a mudança de local e não bastante, foi suprimida no nome do templo, a expressão “dos Homens Pretos”, reforçando a hipótese do branqueamento, mencionada anteriormente.
Argumentações e acontecimentos inusitados ocorreram para expropriar a identidade e espacialidade dos “pretos do Rosário”. Lamentavelmente essas aberrações não estão apenas no passado, a “mancha” da escravidão permaneceu emblemática até mesmo na homenagem realizada para combater a dura realidade desse país, que é racista enrustido. Nada é assumido, tudo está escondido como que atrás de uma “mancha” escura, hoje curiosamente, sob nossos pés, pisados, repisados… Esse é o monumento que nos resta? Espero que não…
Pós-graduado em história, Cofundador da AAPAH, membro da Academia Guarulhense de Letras, presidente do Conselho Municipal de Patrimônio Histórico de Guarulhos, autor de vários livros sobre a História de Guarulhos