O mundo da ópera vive sem grandes constrangimentos de uma eterna reciclagem – e no universo dos cantores isso significa esperar a todo instante a chegada de um novo Pavarotti, um novo Plácido Domingo. Nos últimos anos, o candidato predileto tem sido o tenor Jonas Kaufmann. Mas a medida real de sua fama talvez seja o fato de que, na escolha de repertório ou nas interpretações que ele oferece, o alemão tenha conquistado um lugar próprio, longe da sombra dos mestres do passado. Uma das características de seu trabalho é, por exemplo, o interesse pelo repertório de canções. E é com elas que ele desembarca nesta quarta-feira, 10, em São Paulo, para um recital único ao lado do pianista Helmut Deutsch, na Sala São Paulo, marcando os 35 anos do Mozarteum.
O repertório da apresentação foi divulgado há algumas semanas, pondo fim à expectativa gerada desde que sua vinda ao Brasil foi anunciada, no fim de 2015 – e também à esperança de parte do público de ouvi-lo interpretar óperas que o tornaram célebre, de autores como Verdi, Wagner ou Puccini. “A canção é a rainha dos gêneros do canto. Exige um toque delicado, mais cores, nuances, maior controle de dinâmica, cuidado com o texto. Você está exposto o tempo todo e é o responsável pelo que acontece no palco. O que significa também que não dá para culpar ninguém caso algo saia errado”, brinca o tenor em entrevista ao Estado, explicando sua decisão.
Kaufmann abre o recital com dois dos “papas” desse repertório: de Schubert, canta peças como A Truta, A Tília ou O Jovem na Fonte; e, de Schumann, uma seleção dos 12 Poemas de Justinus Kerner. A música francesa aparece, então, com Henri Duparc: Convite à Viagem, Canção Triste, Phidylé. Na segunda parte, Liszt (Três Sonetos de Petrarca) e uma coletânea de Strauss, com destaque para Cecília, Visão Amigável e Convite Secreto. A ideia por trás do repertório, explica o tenor, tem a ver com diversidade. “Se você opta por cantar um ciclo de canções como Winterreise ou Die Schöne Müllerin, de Schubert, há uma história a ser contada. Mas se você opta por diferentes peças de diferentes autores, então você tem a chance de contar 20 pequenas histórias, sempre alternando temperamentos, estilos, a forma de expressão. Para mim, fazer isso é muito exigente e fascinante”, diz.
O repertório de canções esteve presente na carreira de Kaufmann desde o início – um início que se deu no verão de 1989, quando decidiu abandonar a faculdade de Matemática para se dedicar exclusivamente ao canto. Dez anos mais tarde, após a primeira aparição no Festival de Salzburgo, foi descoberto pelo mundo. Nesse meio tempo, gravou os primeiros discos – parte deles acompanhado justamente de Deutsch, que o guiou em meio ao mundo das canções. Nesse campo, ele acaba de realizar um feito: em Viena e Paris, em junho, interpretou as seis canções do ciclo Das Lied von der Erde, de Mahler, escritos originalmente para tenor e meio-soprano ou barítono.
“Foi uma experiência que não quis deixar de ter. Claro, há grandes diferenças entre as canções, vocalmente e também do ponto de vista da expressão. Com exceção de Von der Schönheit, as canções do barítono são mais introvertidas, enquanto as do tenor são mais extrovertidas. Então faz sentido que elas sejam cantadas por cantores diferentes. Mas, por outro lado, eu me senti atraído pela ideia de cantá-las justamente por essa diferença, criando um arco do início ao fim. Eu não tenho fantasias sobre cantar papéis de barítono no futuro, mas como minha voz sempre é descrita como abaritonada e Renata Scotto já a comparou com o som de um violoncelo, resolvi encarar esse desafio nos concertos com a Filarmônica de Viena”, ele conta ainda.
E é a Mahler – e ao futebol – que Kaufmann recorre quando questionado sobre a comparação com cantores do passado. “Seja na ópera ou no futebol, você nunca está seguro quando chega à primeira divisão. No mundo da música clássica, comparações são parte do jogo. Há pessoas mais interessadas no passado do que no presente. Há certo toque de nostalgia nesse universo. O conhecimento da tradição, para mim, é fundamental. Mas, como disse Mahler, a tradição significa passar adiante a chama e não adorar as cinzas. É por isso que acredito tanto em projetos que se preocupam em levar a ópera até as crianças, é preciso passar a elas essa chama. Eu tinha 6 anos quando assisti à minha primeira ópera, foi Madama Butterfly, de Puccini. Foi, com certeza, um dos momentos-chave da minha vida musical”, acrescenta Jonas Kaufmann.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.