Variedades

A magia de Brahms como só Nelson Freire sabe captar

A foto de Brahms estampada no programa ao lado dos comentários de sua sonata n.º 3, obra central do recital de Nelson Freire, na terça-feira, 30, na Sala São Paulo, está errada. Mostra o compositor em sua versão envelhecida, rechonchudo, com longas barbas brancas. Ora, quando compôs essa sonata, seu cartão de visitas para Robert Schumann, em 1853, ele era o protótipo do artista romântico imberbe, 20 anos, belo como um deus, disposto a conquistar o mundo. E munido de mergulhos na literatura alemã, misturados com a paixão pelo universo pianístico de Schumann, então em seu ano final de lucidez, mas já atormentado pela doença mental que o levaria a se jogar no Reno em fevereiro seguinte, em pleno inverno.

Ele só escreveu três sonatas para piano. E assina todas como “Kreisler Jr.”, alusão ao personagem mestre de capela das histórias de Hoffmann publicadas em 1808, que levaram seu mestre Schumann a compor Kreisleriana, um dos mais intensos ciclos pianísticos românticos. Brahms só deixou crescer a barba quando Schumann morreu, em 1856. Ali enterrou “Kreisler Jr.” Enterrou também a ânsia de mostrar tudo o que sabia numa só obra, como faz nesta sonata, que Schumann chamou de “sinfonia disfarçada”, cinco movimentos distribuídos por mais de 30 minutos.

Nelson fez dela a obra central do recital. Como o jovem Brahms, que colocou tudo que sabia na sonata que decidiria seu futuro (Schumann, dublê de crítico, escreveu um artigo famoso, Novos Caminhos, sobre estas sonatas em sua revista musical). Aos 71 anos, o pianista reproduziu todo o fogo juvenil desta obra escrita por Brahms aos 20 anos. Detalhe: antes de se meter na briga com os adeptos da música de programa (Liszt e Wagner), defendendo a autonomia da música – numa das brigas mais célebres do século 19 -, Brahms coloca, romanticamente, epígrafes. Como esta, para o Andante espressivo: “A noite cai, o luar brilha/Dois corações se unem no amor/e abençoados se abraçam”.

Na segunda parte, adoráveis fogos de artifício como só Nelson sabe reproduzir magicamente diante de nossos ouvidos nos encaminharam para uma obra final impactante e visionária. Primeiro, a encantadora Childrens Corner, que Debussy compôs amorosamente – e com muito swing, incorporando os ritmos sincopados dos inícios do jazz, que vinham do outro lado do Atlântico – para sua queridíssima filha, Chou-Chou, de 3 aninhos. Depois, uma das mais conhecidas e tocadas criações de Chopin, a Barcarola opus 60, antecedeu o Scherzo em si menor, opus 20, sua primeira obra de fôlego, de 1831. Chopin foi o primeiro a emancipar o scherzo, até então apenas um movimento que substituiu os minuetos nas sinfonias a partir de Beethoven. É uma obra tão avassaladora, que os ingleses lhe deram o título de “banquete infernal”, quando publicaram a partitura. É música teatral, dramática. A caráter para o pianismo heroico e ao mesmo tempo poético de Nelson Freire.

Bach, compositor ao qual dedicou seu mais recente CD para a Decca, abriu a noite com três corais, dois em transcrições de Busoni que Nelson adora; e Jesus Alegria dos Homens, na versão de Myra Hess.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Posso ajudar?