Ao esboçar o projeto de seu livro A Baronesa do Jazz, sobre sua tia-avó Pannonica Rothschild, ou Nica, como era conhecida entre a turma do bebop, a escritora inglesa Hannah Rothschild não recebeu incentivo de um único parente. Compreensível. Nica, a Rothschild rebelde, era mesmo a ovelha negra da família de banqueiros. Festiva, foi convidada a se retirar do hotel em que morava em Nova York graças aos convidados inconvenientes que levava para sua suíte.
Encurralada pela polícia numa estrada, foi presa por porte de drogas no lugar do pianista Thelonious Monk, seu amante, viciado num bocado delas. Por fim, num outro ato de generosidade, abriu as portas de seu apartamento ao saxofonista Charlie Parker, também dependente de drogas, que lá deu seu último suspiro, aos 35.
O livro de Hannah Rothschild, porém, não é uma peça de escândalo. Mesmo contra a vontade da família, ela seguiu em frente para entender a figura da tia-avó Nica, que ajudou gênios do jazz como Monk e Parker, sendo retribuída com duas dezenas de músicas compostas para ela ou inspiradas pela patronesse do jazz, de Pannonica e Little Butterfly, ambas de Thelonious Monk, a Thelonica, de Tommy Flanagan, passando por Blues for Nica, de Kenny Drew, Poor Butterfly, de Sonny Rollins, Nicas Dream, de Horace Silver, e Tonica, de Kenny Dorham.
“Ela criou seu próprio mundo fora da família, embora tenha permanecido ligada a ela”, diz a autora de A Baronesa do Jazz, por telefone, de Londres, onde é uma das figuras da sociedade local mais respeitadas no meio cultural. Filha do quarto barão Rothschild, Hannah Mary Rothschild tem se destacado como documentarista e agora escritora de ficção – seu primeiro romance, The Improbability of Love, lançado na Inglaterra há um ano, foi indicado para o prêmio Bailey.
“O livro foi comprado por uma editora do Brasil”, comemora. Nele, Hannah trata do assunto que mais entende: artes visuais (ela integra o Conselho de Administração da National Gallery). A protagonista do livro procura uma tela extraviada do rococó francês Antoine Watteau e acaba envolvida com a elite da arte europeia, que Hanna, evidentemente, conhece melhor que ninguém.
Já para conhecer pessoalmente a tia-avó, em 1984, Hannah teve de descer ao submundo de Nova York. Nica estava com 71 anos e marcou um encontro num clube de jazz depois da meia-noite. “Como acho o clube?”, perguntou a sobrinha, então com 22 anos. “Procure um Bentley azul- claro.” O carro estava mesmo estacionado na vizinhança, com dois bêbados sentados dentro dele. Nica estava no subsolo do decadente clube noturno. Era a única caucasiana do local. Não lembrava em nada a socialite elegante das fotos dos álbuns de família, na época em que era casada com o barão Jules de Koenigswarter, herói de Resistência Francesa, de quem se divorciou em 1951. Com ele teve cinco filhos, que deixou na Inglaterra quando decidiu viver em Nova York, nos anos 1950.
No lugar dos filhos adotou 306 gatos e andava com o porta-malas do carro forrado de ração para dar aos vira-latas das ruas. “Não diria, porém, que ela foi negligente com os filhos, mesmo quando os deixou na Inglaterra para seguir o marido na África.” Simplesmente, conclui Hannah, “ela não conseguiu resistir ao chamado do jazz”. Um chamado, diz ela, comparável aos que os santos recebem, uma manifestação teofânica.
“Nica não era do tipo religioso, mas creio que recebeu de fato um chamado ao ouvir parte da sinfonia Black, Brown and Beige, de Duke Ellington, quando estava no México, em 1943. A peça de Ellington, que para alguns era um libelo político sobre a discriminação racial, foi uma revelação para Nica. De repente, fazia sentido sua presença no continente americano, onde iria se transformar na madre Teresa dos músicos de jazz desamparados. E essa é a palavra que melhor definia Thelonious Monk quando o encontrou. “Ela teve sua segunda revelação ao ouvir Round Midnight”, lembra Hannah. Composta em 1944, é até hoje o standard mais gravado da história do jazz desde 1947, primeiro registro do autor.
Quincy Jones, entrevistado por Hannah, disse a ela que “o jazz tem um jeito de transformar a escuridão em luz” e, de fato, Nica, que frequentava os clubes de jazz da rua 52, em Nova York – os mesmos que atraíam os escritores beat – tirou Monk da miséria do bairro San Juan, onde sua família sobrevivia com o salário de ascensorista da filha do músico. Como o pai de Nica, o banqueiro Charles, que se matou, Monk era depressivo. Pergunto à sobrinha se sua tia-avó não associaria a figura dos dois e se a segregação aos negros americanos não teria um componente similar ao antissemitismo que perseguiu sua família.
“No hotel em que ela morava, o Stanhope, os negros só podiam entrar como empregados, pela porta de serviço, e minha tia-avó não se conformava com a discriminação”, diz a sobrinha. “Além do mais, ela tinha espírito filantrópico, sentia-se privilegiada em poder ajudar os amigos negros.” Esse, aliás, é o motivo de deixar os filhos na Inglaterra para auxiliar os aliados na África contra o invasor nazista. “Ela podia ser excêntrica, mas não alienada”, observa. Prova disso é uma tela pintada por Nica em que ela rabisca o título da mais melancólica canção de Billie Holiday, Strange Fruit (1939), sobre o linchamento de dois jovens negros. Composta, aliás, por um professor judeu do Bronx, Abel Meeropol.
A BARONESA DO JAZZ
Autora: Hannah Mary Rothschild
Tradução: Juliana Lemos
Editora: Objetiva (264 págs., R$ 49.90; e-book R$ 34,90)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.