Norte-americano da Filadélfia, Richard Lester foi viver na Inglaterra, onde virou cineasta. Em 1963, chamou atenção com O Rato Que Ruge, interpretado por duas verdadeiras instituições inglesas da época – Margareth Rutherford, que fazia Miss Marple na série de George Pollock adaptada de Agatha Christie, e Terry Thomas, cuja marca registrada eram os dentes separados da frente. Engraçado como era o filme, apontava, quem sabe, para um humor tradicional – a velha fleuma britânica. E aí, no ano seguinte, percebendo o potencial dos Beatles no cinema, transformou-se em seu diretor oficial, com dois filmes sucessivos – Os Reis do Iê, Iê, Iê, de 1964, e Socorro!, 1965.
O segundo venceu o Festival do Rio e, naquele ano, Lester somou à Gaivota de Ouro a Palma também de Ouro, que recebeu em Cannes por A Bossa da Conquista. Se é verdade que os anos 1960 mudaram tudo – o comportamento, a estética -, Lester, com os Beatles, foi arauto das mudanças. A câmera solta de Os Reis do Iê, Iê, Iê – no original é A Hard Days Night -, o estilo de falso documentário, a forma de desconstruir visualmente, por meio de corte e montagem frenéticos, as canções e a irreverência de John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, tudo contribuiu para a glória instantânea do filme.
Passaram-se mais de 50 anos e Os Reis do Iê, Iê, Iê ressurge glorioso neste domingo, 18, às 14 horas, como a atração da semana dos Clássicos Restaurados da rede Cinemark. Ao longo de 85 minutos, Lester imagina o que seria um dia típico da banda inglesa que estourava no mundo. Um dia sem fim, como o da marmota em Feitiço do Tempo, de Harold Ramis. Os rapazes sacaneiam-se e aos fãs, fogem das garotas, gravam em estúdio. E cantam – Cant Buy Me Love, And I Love Her, I Should Have Known Better e, claro, A Hard Days Night. Tudo isso em rigoroso preto e branco, com base em experiências visuais de vanguardistas dos anos 1920 e 30. Na época, tudo aquilo era novidade no mainstream – que os Beatles estavam revolucionando. Hoje, com o recuo do tempo, pode-se dizer que Richard Lester, aos 31 anos, estava inventando o videoclipe e o estilo MTV. E não é despropositado pensar que se tenha inspirado na célebre cena do assassinato de Marion Crane na ducha de Psicose, de Alfred Hitchcock, para pulverizar qualquer possibilidade de relato tradicional.
Uma dupla, tripla revolução – estética, musical, comportamental. No que se tornou a Swinging London, Beatles, minissaia e pílula andaram juntos numa época de empoderamento da juventude. O rock, a nouvelle vague, o free cinema. Ousar era a palavra de ordem. No Brasil, e carregando nas tintas políticas, surgiu a geração do Cinema Novo. Terra em Transe e a descontinuidade narrativa de Glauber Rocha. O que isso tem a ver com Lester?
Nada, e talvez tudo. Socorro! é tão descontínuo, ou descosturado, que o autor o dedicou ao inventor da máquina de costura. Divisões internas iriam separar, definitivamente, os Beatles, mas antes eles ainda patrocinaram O Submarino Amarelo, de George Dunning, em 1968. Lucy in the Sky with Diamonds. Psicodelismo, surrealismo, pop art. Na trilha, When Im Sixty-Four. Daqui a 12 anos, Os Reis do Iê, Iê, Iê continuará novo como é, agora, aos 52.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.