Antes de imaginar que se tornaria um refugiado de si mesmo, um fugitivo do passado, Belchior já dizia que as coisas não iam bem. Havia dor no jovem de 29 anos mesmo depois de ser cantado e incensado por Elis Regina em Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida; mesmo depois de assinar contrato com a cultuada gravadora Philips, de Andre Midani; mesmo sabendo que, naquele ano de 1976, entrava em estúdio para fazer Alucinação como quem coloca uma bala de prata no revólver.
Enquanto permanece em destino desconhecido, distante dos palcos, dos amigos e da família, Belchior tem três discos relançados em uma caixa pela Universal Music, um projeto com curadoria, textos e pesquisa do jornalista Renato Vieira, repórter do jornal O Estado de S.Paulo. Três Tons de Belchior traz os álbuns Alucinação, de 1976, considerado sua criação mais importante e um dos mais relevantes discos da música brasileira; Melodrama, de 1987; e Elogio da Loucura, de 1988 – estes lançados em CD pela primeira vez.
Mais do que resenhar os álbuns, Vieira foi aos arquivos e entrevistou personagens para textos do encarte, traçando entendimentos fora de lugares comuns. “Eu tenho a impressão de que Belchior sabia que Alucinação seria sua última chance de dar certo”, conclui, depois de contextualizar: “Ele tinha vencido o Festival da Tupi em 1971 com Na Hora do Almoço e gravou um compacto em 1974 que não aconteceu, pelo selo Chantecler.” Foi então que Elis Regina gravou Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida e tudo começou a mudar. As músicas foram parar no disco Alucinação, dentre Apenas Um Rapaz Latino Americano, A Palo Seco, Fotografia 3X4, Sujeito de Sorte, Antes do Fim.
O disco significava não só a grande aposta de Belchior, que sabia que aquele bonde não passaria duas vezes, como uma questão de honra ao produtor Marco Mazzola, que remou contra a maré para emplacar o cearense. Quando levou as músicas à reunião da gravadora em uma fita cassete, quase ninguém vibrou. “Ninguém entendeu muito aquele som”, diz Vieira. Mazzola sugeriu um incomum contrato de apenas um disco. Um único tiro. Era acertar ou desistir. Belchior, protegido por um dos melhores agrupamentos que havia nos estúdios da época (os arranjos eram de José Roberto Bertrami, do grupo Azymuth), acertou.
Belchior arranca sua poesia usando o estranhamento dos olhos de um estrangeiro. “Ele fez esses discos como se pintasse quadros. Tudo tinha um conceito”, diz Vieira. Sua obra, uma grande crônica urbana que narra a saga do brasileiro do interior chegando à cidade grande e expondo-se aos traumas do ultraconsumismo, não poderia ser interpretada por mais ninguém.
O pulo histórico que sai de 1976 para 1987 e 1988, anos dos dois álbuns seguintes, lançados pela PolyGram, mostra que o homem muda na forma, não o conteúdo. Melodrama e Elogio da Loucura estão posicionados na segunda metade da década do deslumbre pela “estética FM”, dos teclados e ecos de estúdio. Assim definiu o próprio Belchior em declaração ao Jornal do Brasil, recuperada pelo curador: “O trabalho atual (Melodroma) tem relação estreita com Alucinação. É a continuidade, a retomada de uma emoção temática. Na década passada, a gente tendia mais para o êxtase, agora inclina-se mais para o horror”.
Belchior segue em seu inconformismo, indignado com o valor que o dinheiro ganha na vida moderna. A música Dandy, de Melodrama, reforça essa ideia: “Mamãe, quando eu crescer / eu quero ser rebelde / se conseguir licença / do meu broto e do patrão / Um Gandhi Dandy, um grande / milionário socialista / de carrão chego mais rápido à revolução”. O consumismo desenfreado, que já havia sido combustível em 1976, vira um alvo cada vez mais almejado. Até que, no término do álbum Elogio da Loucura, Belchior declama, profético de si mesmo, o texto da canção Arte Final: “Ora, senhoras! Ora, senhores! / Uma boa noite lustrada de neon pra vocês / E o último a sair apague a luz do aeroporto / E ainda que mal me pergunte: A saída será mesmo o aeroporto?”.
BELCHIOR
TRÊS TONS DE BELCHIOR
UNIVERSAL MUSIC / PREÇO MÉDIO: R$ 50
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.