Aos seis anos, sofreu uma violência sexual, quando um homem colocou uma chave de fenda em seu sexo. Aos 19, despontou no meio musical com Os Mutantes, deixando a banda seis anos depois. Em 1973, com a banda Tutti Frutti recebeu a consagração nacional até que, no período iniciado em 1979, já ao lado do marido Roberto de Carvalho, veio o reconhecimento internacional. E, nos anos 1980, era imbatível nas baladas românticas.
Rita Lee Jones tem muita história para contar, como comprova o livro Rita Lee – Uma Autobiografia, lançado agora pela Globo Livros. E nada escapa ao seu sarcasmo característico, nem mesmo os momentos difíceis, como o homem que veio à sua casa consertar a máquina de costura e fugiu depois de machucá-la com a chave de fenda. Rita não foge também de fatos incômodos como um aborto e as internações por droga.
Tudo fica mais leve, aliás, graças ao tom brincalhão que marca a escrita de Rita. Mesmo quando se lembra da expulsão das duas bandas que ajudou a criar, Os Mutantes (Mutas, como ela chama) e o Tutti Frutti. “Arnaldo era o irmão que eu gostaria de ter tido”, escreve Rita sobre Arnaldo Baptista. “Aquele que te ensina a trocar pneu, dirigir moto, empresta roupa para você se disfarçar de menino e te leva no banheiro masculino.” Ele também considerou “muito rocknroll” o incidente com a chave de fenda.
Em sua história, Rita cruzou com Elis Regina (“Comigo era só dengo, afinal, eu não representava a menor ameaça à coroa de melhor cantora”), Gil (“inteligente”), Milton (“meigo”), Simonal (“audacioso”). Ela só não comenta o incidente ocorrido em Aracaju, em 2012, quando foi presa por desacato a policiais. O processo ainda está correndo. Sobre o livro, Rita respondeu por e-mail.
O texto revela uma tranquilidade por trás do bom humor, mas você chegou a temer o risco de se tornar frívola ou mesmo autoindulgente enquanto escrevia?
A única coisa que passava na cabeça enquanto escrevia era registrar minhas impressões, boas e más, com distanciamento e humor. Se quisesse ser frívola ou autoindulgente, teria contratado um ghost-writer, não é mesmo?
Há momentos delicados de sua história que você não deixou de fora. Você pensou muito até se decidir revelar fatos delicados?
Na medida em que escrevia, percebi que, ao mesmo tempo em que exorcizava os traumas, eu também dava gargalhada das minhas patetices existenciais. Essa bio foi uma autoterapia curadora.
Há mais detalhes que você preferiu não revelar em torno de sua separação dos Mutantes? É que me pareceu ser um assunto tratado muito en passant.
O tanto que escrevi sobre esse capítulo foi o quanto mereceu dentro da minha big picture – se te pareceu en passant é porque o assunto já está pra lá de passê mesmo.
Aliás, naquela época, produziram-se muitas obras-primas sob as piores condições de liberdade. Por quê?
Yes, nós tínhamos bananas, mas queríamos comer uma determinada maçã. Nos tempos de chumbo, você ia pessoalmente duelar com os censores, baita humilhação. Das raras vezes que conseguíamos driblar uma palavrinha, era uma felicidade. Hoje, não há censura e o que se vê é um monte de bananas preguiçosas. Censura não, talento sim.
Por que decidiu deixar explícita a vontade de mostrar determinados trechos da escrita encobertos por longos traços negros?
Quis deixar registrado o meu lado daquela história (que a imprensa não se dignou saber na época) até que o processo que ainda corre por lá prescreva, daí descubro os “longos traços negros” e você poderá saber os mistérios entre o céu e a terra.
Você mostra que aprendeu regras para que pudesse quebrá-las, mas ainda considera esse ato de quebrar muito difícil?
Uma “quebração” difícil, que as feministas chauvinistas de hoje (com essa mania de demonizarem os machos) se perdem, é a conquista de salários iguais e o direito sobre o próprio corpo.
A roqueira cansou? Esse livro fecha sua história ou acha que ainda vai produzir fatos biográficos em sua carreira?
O que mais me orgulha nos 50 anos de estrada foi nunca ter vendido a alma para leis rouanets e palanques políticos. Dos palcos, quero distância; da música, nunca, continuo fazendo o que mais gosto que é compor. Escrevi a biografia daquela “ritalee” de cabelos de fogo que saía em turnês – a de hoje está beirando os setentinha, deixou os cabelos brancos e acha a vida de dona de casa o maior barato. Envelhecer não é para maricas. Ainda me falta muita coisa a fazer. (Colaborou Julio Maria)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.