Através da Sombra é uma adaptação à brasileira da novela A Volta do Parafuso, de Henry James. A versão anterior mais conhecida é a de Jack Clayton, de 1961, aqui traduzida como Os Inocentes, e estrelada por Deborah Kerr. É um filme assustador. Assim como se propõe ser a versão nacional, dirigida por Walter Lima Jr. com Virginia Cavendish no papel principal.
Ela é Laura, a governanta enviada para cuidar de duas crianças órfãs numa fazenda. Quem a contrata é o tio das crianças, Afonso, interpretado por Domingos Montagner em um dos seus últimos papéis. Na versão brasileira, o personagem é visto enquanto treina luta livre com um sparring. Reforça-se o caráter viril do personagem, e isso tem a ver com a proposta de Miller em sua novela – a impressão sensual do personagem masculino sobre uma mulher sexualmente reprimida. Essa premissa será fundamental ao desenvolvimento da trama.
Outro “abrasileiramento” do texto se dá no tipo de fazenda para a qual Laura é enviada. Estamos na pós-crise de 1929, quando colheitas de café eram queimadas por ordem do governo para recuperar preço no mercado internacional. Essas queimadas contribuem para o efeito fantasmagórico do filme, bem explorado pela fotografia de Pedro Farkas. O casarão também é um achado, com seus quartos amplos, chãos de madeira que rangem, corredores compridos, cantos mal iluminados.
Tem clima. Assim como contribui para o drama a presença da governanta da casa, dona Geraldina, interpretada com sutil ambivalência por Ana Lucia Torre.
Por fim, há que se considerar a boa presença de Virginia Cavendish no papel da mulher travada, Laura, que vê o que os outros não veem. Ou, talvez, apenas projete para o exterior fantasmas de sua própria personalidade. Como saber? E, nessa interrogação, está todo o mistério da construção do filme, a partir de uma obra considerada clássica do suspense.
Como sabem os leitores de Henry James, sua estratégia de suspense passa por uma narrativa de segunda mão. O narrador diverte seus amigos contando uma história de terror à beira de uma lareira. Diz que conheceu uma determinada pessoa, que no passado foi governanta de duas crianças, etc… E que está em posse de um diário, deixado por esta governanta, que, aliás, já faleceu. A história é a da leitura desse diário íntimo, do qual o mínimo que se pode dizer é que parece suspeito em muitos pontos, apesar da força expressiva de sua narração.
Nunca confiamos de todo na veracidade da trama. Não se trata de falta de sinceridade, porque esta existe. Desconfiamos é da objetividade de quem narra os fatos. Mas que fatos? Será que tudo aquilo aconteceu ou simplesmente a pessoa se deixou influenciar por seus nervos frágeis. Todo suspense vem dessa desconfiança narrativa.
Pode-se dizer que a versão brasileira procura trabalhar com esse traço, embora a suspeita do narrador (da narradora, no caso) seja bem mais complicada de estabelecer na linguagem cinematográfica que na literária. De toda forma, vemos o que vê Laura, mas não temos qualquer garantia que isso seja “a verdade”. Quem é essa pessoa que aparece de vez em quando e parece ter grande influência sobre as crianças. De que modo morreu a outra governanta, a sua antecessora no emprego? Por que as crianças parecem ora adoráveis e ora se comportam como se estivessem possuídas? A mente confusa de Laura não consegue processar tantos dados duvidosos ou contraditórios.
Através da Sombra é extremamente bem filmado. Nem poderia ser de outra forma. Walter Lima Jr. é um dos mestres do cinema brasileiro, vindo ainda dos tempos do Cinema Novo. Além do mais, sabe como colocar sua marca. Não apenas no manejo clássico da linguagem cinematográfico, mas na presença de algumas constantes de pensamento em sua obra. Ele mesmo identifica uma delas: a questão da repressão sexual, trabalhada em outras obras como Inocência, Ele, o Boto e A Ostra e o Vento. É a sexualidade reprimida, porém intensa e latente de Laura que dá sentido a este bonito filme. Talvez um tanto frio para o que se propõe. Ainda assim, muito competente.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.